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11/05/2018

Carlinhos, o guru do Joca

Quando o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa anunciou na terça-feira dia 8, por meio do Twitter, que não seria candidato à Presidência da República, ele pegou muita gente de surpresa, mas não seu amigo e confidente “Carlinhos”. É como Barbosa se refere ao ex-ministro Carlos Ayres Britto, seu ex-colega de Supremo, onde entraram em 2003 por indicação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Dias antes, “Joca”, o apelido de Barbosa, havia conversado longamente por telefone com o amigo e disse estar cheio de dúvidas sobre a entrada no páreo presidencial. Naquele momento, Ayres Britto entendeu que precisaria escolher outro nome para clicar na urna em outubro.

As dúvidas de Barbosa diziam respeito à saúde, à vida pessoal e ao futuro de seu escritório de advocacia. Quando era ministro do STF, Barbosa sentia fortes dores na coluna, provocadas por um problema no quadril. Fora da rotina do tribunal, ele conseguiu tempo para se tratar e hoje está praticamente livre das dores. A rotina de Barbosa passou também a ser bem mais amena, com tempo para caminhadas na praia no Rio de Janeiro. Além disso, em 2012, quando se aposentou do Supremo aos 58 anos, 12 anos antes do fim de seu mandato, Barbosa montou um promissor escritório de advocacia. Como boa parte dos ministros aposentados do Supremo, passou a se dedicar à elaboração de pareceres (pelos quais cobra, em média, R$ 250 mil por peça). Para ser candidato presidencial pelo PSB, Barbosa teria de abdicar de tudo isso.

Até o telefonema dias antes do anúncio da desistência, Ayres Britto era um dos mais entusiasmados cabos eleitorais da candidatura do amigo. Depois de negar um convite do PSB para, ele próprio, ser candidato a presidente, o ex-ministro aproximou Barbosa do partido. Nos bastidores, ele também trabalhou para articular uma união política de Barbosa com a ex-senadora Marina Silva, a pré-candidata da Rede, de quem Ayres Britto também é amigo. Ele promoveu encontros entre Marina e Barbosa, encontrou assuntos em comum, aproximou os dois. Barbosa pulou fora quando viu que seu papel na aliança seria o de ser vice na chapa de Marina.

Depois que a articulação fracassou, Ayres Britto passou a dizer que votaria em Barbosa se tivesse de optar entre o ex-colega de Supremo e a ex-senadora do Acre. “Entre ele e a Marina, claro que eu teria de pensar um pouco mais. Mas eu teria uma tendência para votar no Joaquim, com muito gosto”, disse a ÉPOCA. Em sua disposição de apoiar Barbosa, Ayres Britto relevava até o famoso temperamento mercurial do amigo. “Uma coisa é Joaquim no Supremo, no calor do debate. Numa esfera político-partidária, muda tudo. As pessoas mudam. A esfera político-partidária é, por definição, a esfera do diálogo, da paciência.”

Como presidente do STF, boa parte da jornada de Ayres Britto era dedicada a colocar panos quentes nas discussões acirradas de Barbosa em plenário com os outros ministros — em especial, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Fora dos holofotes, batia no ombro do amigo e dizia “deixa disso” para tentar promover a paz. Em 2009, quando Barbosa disse a Gilmar em plenário que o colega tinha “capangas” e que deveria ir às ruas para saber o que as pessoas achavam dele, num dos bate-bocas mais ruidosos da Corte, Ayres Britto pediu vistas de um processo, para tentar abafar o caso. Estava colocando em prática uma das frases de um de seus sete livros de poesia: “Nossas rugas aumentam para que nossas rusgas diminuam”.

Seus laços com o mundo político não se limitam a Marina, Barbosa e o PSB. Quando se aposentou do STF, em novembro de 2012, ele decretou: “Está de bom tamanho a minha trajetória pela vida pública”. A frase funcionou como uma espécie de profecia às avessas. No ano passado, o presidente Michel Temer sondou Ayres Britto para ser seu ministro da Justiça, mas ele declinou do convite. Recentemente, também foi cortejado por quatro partidos — além do PSB, o Partido da Mulher Brasileira (PMB) também queria vê-lo como candidato a presidente da República. A Rede e o Podemos queriam filiá-lo a seus quadros antes de conversar sobre a composição das chapas. Ayres Britto recusou todas as propostas, mas se mantém ativo nos bastidores.

É amplo o leque de interlocutores do ex-ministro. Gosta do ex-governador do Ceará Ciro Gomes, com quem “troca uma ideia” sempre que se encontram. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso o convidou para fazer uma palestra no instituto que leva seu nome. Ele diz ter afinidade “no plano pessoal” com o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin. Troca mensagens de WhatsApp com o senador Alvaro Dias (PR), a aposta do Podemos para o Palácio do Planalto. Acha o presidente do PSB, Carlos Siqueira, “um doce de pessoa”. É próximo de José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff. E é amigo há 15 anos de Marina Silva, com quem compartilha as preocupações ambientais — externadas em seus versos.

“Quanto mais frondosa a árvore que tomba, mais fechado o luto dos pássaros”, escreveu em um de seus livros. Em outra ocasião, o ex-ministro misturou ecologia e corrupção na mesma frase. “A fenda exposta no tronco do ipê condena o machado à perda de seu cabo — a pena é de ipeculato”, versejou. Os trocadilhos poéticos permeiam as conversas do sergipano Ayres Britto sobre qualquer tema. Logo que chegou ao STF, em 2003, esse estilo encontrou barreiras. Certa vez, ele citou um verso do português Luís de Camões em um voto. O então presidente do STF, Nelson Jobim, ficou bravo: “Até onde sei, Camões não era jurista!”. Ao que Ayres Britto respondeu calmamente: “Mas era sábio”. Dias depois, ele encomendou da Ilha da Madeira, em Portugal, um livro que provava o saber jurídico do poeta lusitano. Deu o exemplar de presente ao colega, que reagiu com uma gargalhada.

Aos 75 anos, Ayres Britto diz que não sente ânimo para se filiar a nenhuma legenda. Mas, em 1990, ele concorreu a uma vaga de deputado estadual pelo PT de Sergipe. Depois que foi nomeado para o STF, escolhido pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele se desfiliou do partido. Ayres Britto conta que não é amigo de Lula, mas votou quatro vezes no petista para a Presidência da República. Perguntado por ÉPOCA se faria o mesmo neste ano, ficou, depois de ouvir a pergunta, em silêncio por um momento até finalmente responder. “Hoje, dependeria dos concorrentes”, disse. Emendou em seguida: “Independentemente de nomes, sou contra a investidura pela terceira vez em cargo de chefe do Poder Executivo. Uma reeleição, vá lá... Não um terceiro mandato”.

Ele mantém, no entanto, sua opinião de que Lula não deveria ter sido preso antes do trânsito em julgado do processo sobre o tríplex do Guarujá, no litoral de São Paulo — ou seja, antes do exame do último recurso apresentado pela defesa do ex-presidente. Em 2009, quando era ministro do STF, Ayres Britto votou pela possibilidade de um réu ficar em liberdade até o trânsito em julgado. Continua convicto da mesma tese. “Só pode haver sentença penal condenatória, vale dizer, impositiva de pena, com o trânsito em julgado da sentença. Ele não poderia ter sido preso agora”, disse. “Porém, o Supremo não entende assim. Mudou de opinião em 2016. Fazer o quê? Cumprir.”

Entre uma conversa e outra no mundo político, Ayres Britto faz pareceres jurídicos e chefia um escritório com outros dez advogados. O empreendimento fica em uma casa no Lago Sul, bairro nobre de Brasília. Também tem um escritório na Vila Olímpia, em São Paulo. Como advogado, prefere não atuar em causas criminais. Seus clientes são basicamente empresas e sindicatos. Se Barbosa cobra, em média, R$ 250 mil por parecer, Ayres Britto diz que seu preço também “é por volta disso”. Mas explica que a maioria dos trabalhos custa um pouco mais do que essa cifra. Ele prefere, porém, não falar qual foi a causa mais cara e diz que outro sócio cuida da parte administrativa do escritório.

“Eu gosto de dinheiro, quem é que não gosta? Esse dinheiro, as pessoas pensam que é muita coisa, mas não é. Os honorários são divididos com os outros advogados”, disse. Apesar de o nicho dos pareceres ser muito rentável, Ayres Britto afirmou também que ganha menos do que faturava antes de entrar no STF. Até ser nomeado para o Supremo, disse, mantinha um escritório com 33 advogados. Para entrar na Corte, teve de abdicar de proventos gordos. O valor do salário de um ministro do Supremo é R$ 33.700 por mês — o teto do funcionalismo público. O valor líquido é de R$ 18.800.

A passagem pelo STF pode ter-lhe custado dinheiro, mas lhe valeu também sabedoria. Por coincidência — ou por sorte, como Ayres Britto prefere dizer —, ele foi sorteado relator de processos polêmicos. A lista é longa: a legalidade das cotas raciais no ensino superior; a derrubada da Lei de Imprensa; a liberação das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias; a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima; a união civil de pessoas do mesmo sexo; a permissão para a marcha da maconha; o fim do nepotismo do setor público; e a autorização para sátiras a políticos na imprensa mesmo em período eleitoral. Em todos os casos, seu voto, como relator, foi seguido pela maioria da Corte.

Em 2012, veio a prova de fogo. Mesmo contra a vontade de alguns de seus colegas e de boa parte da classe política, Ayres Britto, como presidente da Corte, conseguiu incluir na pauta do STF o processo do mensalão. Além de ter produzido condenações, o julgamento serviu de inspiração para muitos versos do magistrado. “Quanto mais se lava dinheiro por aqui, mais o país fica sujo.” E ainda: “O que certos políticos sabem é cerzir as meias verdade”. Na mesma época, o ex-ministro também disse: “Há quem chegue nas maiores alturas para cometer as maiores baixezas”. Hoje, lembra-se dos tempos de tribunal com satisfação. “No Supremo, aceitei o desafio de ser jurista sem deixar de ser poeta. E acho que consegui”, disse.

Depois de aposentado, advogou em três causas no Supremo. Duas delas ainda não foram julgadas. A primeira foi ajuizada em 2012. É uma ação do Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Federal de Sergipe contra a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A entidade pede para ser pago a um grupo de militares um reajuste salarial de 28,86% retroativo a janeiro de 1993. O outro processo é de 2014, de um ex-cabo da Aeronáutica dispensado do serviço pela ditadura militar na década de 1960. O ex-militar foi anistiado na condição de perseguido político, mas a condição foi anulada por filigranas jurídicas. O escritório de Ayres Britto atua como amicus curiae — ou seja, alguém interessado na causa, embora não tenha entrado com a ação. O ex-ministro representa a Associação dos Anistiados do Nordeste (Asane). Ayres Britto não assinou pareceres em nenhuma das duas ações que tramitam no STF. Preferiu deixar a tarefa para os sócios. A terceira causa era o recurso de um servidor aposentado do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que queria receber benefícios destinados a funcionários da ativa. Por motivos técnicos, o STF não recebeu o recurso e arquivou o caso sem julgar.

Como acontece com muitos ministros do STF, a família Britto é toda permeada pelo Direito. “Meu pai era juiz de carreira e tinha 11 filhos. As pessoas diziam que era um time de futebol e o juiz. Meu pai dizia: ‘Não, eu sou a bola’. Ele era frasista, poeta, literato”, disse, como a explicar sua veia poética por uma herança genética. No primeiro casamento, Ayres Britto teve dois filhos. Um é juiz e a outra, concursada da Justiça Eleitoral. Dos três filhos com a mulher Rita, com quem é casado há 37 anos, duas são advogadas e atuam no escritório do pai. O terceiro é músico e compositor. As duas filhas moram com Ayres Britto e a mulher numa casa no Lago Sul.

Lá, apesar de a casa estar passando por uma reforma, Ayres Britto mantém a prática de fazer meditação todos os dias, logo depois de acordar. De formação católica, ele passou a dispensar os “rótulos” religiosos. Lê o guru indiano Osho e frequenta dois centros espíritas: o de seu Valentim, na cidade-satélite do Gama, perto de Brasília; e o médium João de Deus, na cidade de Abadiânia, em Goiás. Foi ele quem apresentou o ministro Luís Roberto Barroso, também do STF, ao médium, “Acredito numa outra vida, mas não saberia explicar minha crença. Cheguei à conclusão de que as religiões existem para a gente não fechar com nenhuma”, disse, em tom filosófico.

Fonte: https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/05/carlinhos-o-guru-do-joca.html