Leitura

13/07/2015

O que fazer quando a saúde vira caso de polícia

Um economista me contou, não faz muito tempo, sobre sua surpresa ao notar a presença de uma figura destoante durante uma discussão sobre custos de saúde realizada nos Estados Unidos. O sujeito acompanhava os debates atentamente, mas parecia um estranho no ninho. Nada de paletó, gravata nem qualquer outro sinal previsível no ambiente corporativo da indústria da saúde. 

“O cara parecia o Magnum”, me disse ele. A referência é antiga, mas a comparação faz sentido. Sucesso da TV americana nos anos 80, Magnum era uma série de ação sobre um ex-oficial da inteligência americana que se tornara investigador particular. 

O personagem era musculoso, usava bigode, óculos escuros, boné, anelão. Tinha “cara” de policial, segundo a mais estereotipada visão da profissão. Era interpretado por Tom Selleck. Sim, o mesmo ator que na semana passada foi acusado de roubar água de um hidrante público na Califórnia. 

Curioso, o economista puxou papo e descobriu o que aquele sujeito estranho fazia ali. Ele era, de fato, um policial. Trabalhava na divisão de investigação de crimes contra a saúde do FBI, a agência federal americana. E como tinha trabalho!

No dia em que conversamos, o economista se lembrou dessa história para reforçar a ideia de que o Brasil precisava, com urgência, criar um grupo de investigadores dedicados exclusivamente a esse tipo de crime. 

Não é de hoje que as denúncias de desvios de conduta, corrupção ou de roubo descarado dos poucos recursos da saúde revoltam os brasileiros. O que faltava era admitir, de forma oficial, que a saúde brasileira virou caso de polícia.  

Isso aconteceu na semana passada. Segundo o ministro da saúde Arthur Chioro, a Polícia Federal terá uma divisão para apurar apenas crimes contra a saúde. O governo também enviará ao Congresso um projeto de lei para criminalizar fraudes na prescrição e comércio de dispositivos médicos implantáveis, como órteses e próteses. 

Nos últimos anos, a máfia das próteses foi denunciada por diversos veículos da imprensa. No Paraná, as irregularidades deram origem a uma CPI na Assembleia Legislativa, mas o governo federal só criou um grupo de trabalho para discutir o assunto em janeiro, depois da contundente reportagem do programa Fantástico, da TV Globo.

Os jornalistas denunciaram as fraudes no comércio desses equipamentos em hospitais da rede pública e os métodos questionáveis usados pelos fabricantes para estimular o uso (desnecessário, em muitos casos) de seus produtos em instituições privadas. 

Segundo o projeto de lei proposto pelo Ministério da Saúde, a obtenção de lucro ou vantagem ilícita na venda, prescrição ou uso desses produtos passa a ser crime. O governo também pretende monitorar o mercado, por meio da padronização das nomenclaturas e de sistemas de informação mais eficientes.

Essa é uma área que precisa de um choque de transparência. Hoje ninguém sabe quanto valem os produtos. Nem mesmo os hospitais, os planos de saúde, os governos e, muito menos, os pacientes.

Os distribuidores não têm tabela de preço. De cada hospital, cobram um valor diferente. Esse sistema é um terreno fértil para fraudes e um incentivo ao desperdício, como ÉPOCA contou nesta reportagem. Há casos em que o médico indica ao hospital a empresa que fornece o material e, ao mesmo tempo, recebe dinheiro do fabricante.

Do jeito como a saúde funciona no Brasil, toda a estrutura se volta para incentivar as fraudes e o aumento de custos. Quando o mercado não é capaz de resolver tantas falhas do próprio sistema – como o caso da assimetria de informação que compromete a comparação de preço e qualidade – cabe ao governo criar mecanismos de transparência e incentivar a concorrência.

É preciso lançar luzes sobre esse mercado doente e punir com rigor aqueles que fraudam descaradamente a saúde brasileira. O que eu e você podemos fazer? Não silenciar diante dos desvios e denunciá-los às autoridades competentes. Trabalho não faltará ao novo grupo da Polícia Federal. O Magnum do FBI que o diga.

(Cristiane Segatto escreve às segundas-feiras)

 
 

Fonte: Revista Época