Cinquenta e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove brasileiros foram assassinados no país em 2014. Sete pessoas por hora. A polícia matou oito pessoas por dia. Números aterradores como esses, contidos no 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na quinta-feira, não chegaram às manchetes. Foram ofuscados pela turbulência política. Mas, acima de tudo, pelo fato de estarmos, como nação, adormecidos para a gravidade do que eles representam. Por não compreendermos o que esses números traduzem. Todos os anos são publicados levantamentos independentes sobre quanto se mata no Brasil. O anuário, por exemplo, é feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o FBSP, uma organização não governamental.
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Quem tenta, como eles, compilar quantos são nossos mortos tem de montar um quebra-cabeça de informações que vêm de diferentes fontes oficiais, principalmente do Sistema Único de Saúde e das secretarias de Segurança Pública dos Estados. É um esforço tremendo. “O Brasil não carece de dados. As polícias têm esses números. O que nós não temos são informações. A sociedade não tem clareza sobre o significado desses números”, diz Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do Conselho de Administração do FBSP. “Essas informações têm impacto nas políticas de segurança. E, pela Constituição, são públicas. Mudar essa cultura é o que ainda está em aberto no Brasil.”
A informação é tão fundamental porque pode redefinir como se trata a segurança pública no país. Uma pesquisa do Datafolha, encomendada pelo próprio FBSP e divulgada junto com o anuário, mostra que 50% dos brasileiros acreditam que “bandido bom é bandido morto”. Mas o levantamento mostra que as mortes causadas por policiais são quase 47% superiores às causadas por latrocínios. “Há uma enorme disputa em curso sobre o que significa fazer segurança e qual o papel das polícias. A informação tem um papel estratégico nisso. Um exemplo: o deputado Jair Bolsonaro falou que a polícia devia matar mais. E os números mostram que as mortes decorrentes de intervenção policial são a segunda causa das mortes intencionais no país. São muito superiores aos latrocínios, que tanto assustam e são usados por pessoas como ele para justificar a violência policial”, diz Lima.
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Um país que sabe contabilizar suas vítimas é mais capaz de elaborar políticas para combater a violência, diagnosticar quem está matando quem e por quê. Os levantamentos independentes cumprem um papel importantíssimo de divulgação e análise dessas informações. Mas só agora o Brasil começa a ter uma base de dados oficial confiável e uniforme sobre homicídios. Desde 1871, quando as primeiras estatísticas sobre violência foram registradas no Brasil, o país sofre para fechar essa conta. A segurança pública é atribuição dos Estados. Cada uma das 27 unidades da Federação tem umametodologia para registrar os homicídios. Aliás, nem todas estão equipadas para fazer esse levantamento – ou dispostas a fazê-lo. Afinal, que governador quer arcar com o ônus de revelar os índices de violência em seu Estado, em sua gestão? Caberia, então, ao governo federal impor uma contabilidade uniforme e consistente. Desde os anos 2000, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, fala-se em construir um sistema nacional de notificação e compilação de dados sobre homicídios. Em 2007, já na gestão de Lula, chegou-se a um protótipo do que esse sistema seria. Criaram-se modelos de boletins de ocorrência e de uniformização para esses dados, o embrião do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas, o Sinesp. Ao longo de 2011, o Ministério da Justiça tentou convencer os Estados a abastecer voluntariamente esse sistema. Diante da resistência, acabou tendo de aprovar uma lei, em 2012, que condicionaria a liberação de recursos federais aos Estados à liberação dessas informações. Mais de uma década de informação – e, portanto, de políticas públicas – foi perdida.
Em 2013, finalmente os Estados passaram a alimentar o Sinesp. Porém, cada Estado ainda utiliza critérios diferentes para falar do mesmo crime. No caso de homicídios decorrentes de violência doméstica, por exemplo, tem Estado que classifica como violência doméstica; outro que chama de violência Maria da Penha; outro, ainda, de crime passional. A soma se torna um pesadelo. O Sinesp tenta tornar essa classificação homogênea. Mas a padronização não está completa. O Ministério da Justiça ainda não conseguiu produzir um relatório com a abrangência e a análise que os levantamentos independentes têm. Segundo Lima, em dezembro de 2014, o ministério fez uma licitação para encontrar um parceiro que fizesse essa análise com os dados do Sinesp. O vencedor foi o próprio FBSP. “Por causa da burocracia, o contrato só foi assinado em julho deste ano. Então, decidimos lançar o anuário, que é uma produção independente, antes do relatório do ministério”, diz Lima.
Para extrair os dados das secretarias de Segurança Pública dos Estados, o FBSP teve de recorrer à Lei de Acesso à Informação. Muitos forneceriam os números voluntariamente. Mas, como alguns resistem, Lima decidiu usar a lei para todos, e garantir que os dados viriam completos. No caso das mortes causadas por policiais, tema ainda mais sensível, o FBSP sempre precisou recorrer à lei para conseguir os números. Enquanto houver tanta contrariedade dos órgãos de governo de realizar essa tenebrosa conta, com critério, método e transparência, o número final dessa somatória será sempre assustador.