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07/05/2016

Sem medo do ridículo, Cardozo quer usar decisão do STF para anular processo

Chego a sentir, às vezes, um pouco de pena de José Eduardo Cardozo, advogado-geral da União. Mas passa logo. Se ele não tem cuidado com o que pode haver de virtuoso em sua biografia — afinal, é professor de Direito —, por que serei eu a tê-lo, não é mesmo?

Esse gigante falou na Comissão Especial do Impeachment no Senado. E voltou à ladainha: Dilma não cometeu crime nenhum, e o processo é golpe. Já conhecemos a argumentação e o seu ridículo. Mas ele estava mais excitado do que de hábito nesta quinta.

Quando foi falar no Senado, já conhecia a decisão de Teori Zavascki. Segundo disse, ela confirma a tese do governo de que, no ato inicial da recepção da denúncia contra Dilma, Eduardo Cunha agiu com “desvio de poder”. Aí o doutor dá um triplo salto carpado argumentativo e conclui que, então, todo o processo do impeachment tem de ser anulado.

É claro que ele prestou atenção ao que foi decidido. Estava apenas fazendo firula. Em nenhum momento os senhores ministros do Supremo cogitaram a hipótese de que os atos de Cunha à frente da Presidência da Câmara poderiam ser anulados. Ora, se aquela recepção inicial da denúncia era inválida porque, afinal, tratava-se de mero ato de vingança ou de retaliação, a quais outros atos se poderia atribuir igual intenção.

Mais: Cardozo e a lógica não são Romeu & Julieta, Claudinho & Buchecha ou namoro & amasso. Não! Cardozo e a lógica não se dão bem, são adversários. Ora, se Cunha não tinha legitimidade, então, para o primeiro ato de acolhimento da denúncia, por que ele a teria para rejeitá-la?

Sim, é verdade: se o deputado tivesse arquivado no lixo também a denúncia que prosperou, por óbvio, ela não teria… prosperado! Não aquela. Mas quem garante que não viria outra? Também se pode pensar deste modo: se Dilma não tivesse pedalado, não teria havido a denúncia, não é mesmo?

E isso ainda não esgota a questão: o governo fala como se o impeachment decorresse de um único voto. Esquece que nada menos de 367 deputados — 72,12% da Câmara — decidiram autorizar o Senado a abrir o processo. Dilma precisava de apenas 33,33% da Câmara; obteve 26,7%. Mais: se o afastamento será fatal, pois requer só a maioria simples dos senadores, a sua condenação precisará do voto de pelo menos 54 senadores.

É uma vigarice política, uma mentira grotesca, uma farsa patética afirmar que o impeachment derivou da vontade de Cunha. Seria como estancar certo fio d’água que nasce lá no Peru para secar o Rio Amazonas. De resto, o próprio Supremo já enfrentou essa questão e, obviamente, referendou a competência que tinha o presidente da Câmara para rejeitar ou dar o primeiro passo, e apenas o primeiro passo, na tramitação da denúncia.

Truque retórico
O governo sabe que o Supremo não vai se meter nessa roubada. A petezada vai apelar à Corte para reforçar a pecha de ilegitimidade do processo de impeachment. Uns dois ou três ali podem se comover. De resto, parece que o tribunal já interferiu o que basta na Câmara, não é mesmo?

                                                                     Fonte: Revista Veja