O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou na última semana uma ação direta de inconstitucionalidade contra o § 2º do art. 4º da Lei 12.850/2013, para acertadamente excluir a possibilidade de o delegado de polícia realizar diretamente acordo de colaboração premiada com investigados nos autos de inquérito policial.
A previsão legal é flagrantemente incompatível com o art. 129, inciso II, da Constituição da República segundo o qual compete ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Em outras palavras, a responsabilidade constitucional de ajuizar uma ação penal e acompanhá-la em juízo até seu trânsito em julgado, durante o longo caminho processual a ser percorrido até a condenação de um criminoso, é induvidosamente do Ministério Público. Caberá ao Parquet demonstrar, já na denúncia, as provas do crime e de sua autoria. Deverá ainda velar o MP pela produção de provas perante o juiz e pelo contraditório, interpor recursos, e cuidar da execução da pena, tudo com vistas à punição do culpado e à justa aplicação da lei, mirando, em última análise, a proteção da sociedade.
Nessa linha, assim como ficou absolutamente claro para a opinião pública, na tramitação da malfadada PEC 37, que excluir o Ministério Público da investigação de crimes seria um desserviço para o interesse público, neste caso também parece evidente que atribuir a delegados de polícia o poder de restringir o exercício de prerrogativa do Ministério Público de ajuizar ações penais é inconciliável com o combate à impunidade.
Muito se tem falado na imprensa sobre um suposto conflito corporativo entre o Ministério Público e a polícia judiciária (Federal e Civil). Para avançarmos no tema, antes, seria necessário desfazer o equívoco que vem embutido em tal pensamento.
Em primeiro lugar, o Ministério Público jamais poderia entrar em conflito com qualquer instituição pública do país pela simples razão de que lhe cabe, entre outras tantas atribuições, velar pela ordem jurídica e pelo estado de direito. Assim, é dever primeiro do MP defender as instituições, e não se voltar contra elas. Em segundo lugar, é preciso separar o verdadeiro interesse das instituições dos anseios corporativos daqueles que a compõem, pois esses interesses nem sempre caminham necessariamente juntos. Em terceiro lugar, é preciso lembrar, embora seja óbvio, que as polícias não se confundem com os delegados. Estes representam apenas uma das carreiras que integram as polícias judiciárias. No caso federal, por exemplo, tem-se ainda as carreiras dos escrivães, dos agentes e dos peritos.
Dito isso, podemos começar por circunscrever os limites do embate e lançar luzes sobre a pauta oculta que está por trás do que parte da imprensa tem chamado de “queda de braço” entre o MP e a “polícia”. É de conhecimento público que a nossa investigação criminal é hoje anacrônica e ineficiente. No atual modelo, baseado no inquérito policial, dá-se muito mais atenção ao cumprimento de regras cartorárias do que ao resultado que se busca alcançar – ou que se deveria buscar – na investigação: a elucidação do crime e de sua autoria. Em outras palavras, o inquérito é instrumento excessivamente burocratizado e já ultrapassado.
Os números a esse respeito falam por si: embora o Brasil tenha registrado mais de 50 mil homicídios por ano, os casos elucidados não chegam a 8%. Enquanto isso, no Reino Unido, esse percentual é de 90% e, nos Estados Unidos, de 65%. Muito embora não se tenha números em relação aos delitos de corrupção, é de se supor que estes sejam ainda mais desalentadores, considerando as naturais dificuldades de investigar crimes dessa natureza, que usualmente são praticados de forma dissimulada e fundados em um pacto de silêncio entre as partes envolvidas.
Induvidosamente, um dos fatores responsáveis por esse estado de coisas é a estrutura investigativa essencialmente fundada no inquérito policial, instrumento que injustificadamente emula o processo judicial e abarca os seus vícios. No inquérito, o chefe da investigação é o delegado de polícia, carreira privativa de bacharéis em direito, que vem, ao longo dos anos, paradoxalmente, envidando ingentes esforços para afastar seu cargo da atividade propriamente policial, a fim de transformá-lo artificialmente em função jurídica – basta ver que a Lei 12.830/13 tem um dispositivo apenas para dizer que aos delegados deve-se reservar o mesmo tratamento protocolar dos magistrados. Nessa cruzada por espaço de poder, o sistema burocratizado do inquérito é absolutamente necessário para, de um lado, submeter as demais carreiras policias – técnico-científicas e os agentes-investigadores – e, de outro, ocupar espaço constitucionalmente reservado ao Ministério Público.
Não foi por outra razão que o forte lobby dos delegados, no Congresso Nacional, logrou incluir a sua carreira como um dos legitimados para firmar acordo de colaboração premiada durante o trâmite do inquérito policial, para oferecer ao investigado coisa sobre a qual o delegado não tem nenhuma disponibilidade: o resultado de uma ação penal. A novel regulamentação dos acordos de colaboração sem dúvida é merecedora de todos os elogios, mas permitir que o delegado, fugindo completamente de suas atribuições policiais, venha a se imiscuir na seara processual para cercear o Ministério Público no manejo da ação penal, além de absolutamente inconstitucional, é mais uma âncora lançada na nossa legislação para dificultar a modernização das investigações e o fim de um modelo ineficiente e obsoleto, datado de 1871.
É consenso que o Brasil precisa avançar no desenvolvimento dos seus instrumentos de investigação. Nada obstante a Lei de Combate às Organizações Criminosas já tenha representado um significativo passo na modernização de nossas técnicas investigativas, por si só, ela é insuficiente para a solução dos gargalos na persecução penal, os quais dificilmente serão superados se não vencermos as resistências corporativistas que assombram o tema.
Fonte: Agência FENAPEF