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06/06/2016

A autonomia excessiva da PF é perigosa, diz Luís Antônio Boudens

Agravações do ministro licenciado do Planejamento, Romero Jucá, nas quais ele explicita um pacto para deter a Lava Jato, reacenderam uma disputa entre agentes e delegados da Polícia Federal. Por meio de sua associação nacional, os delegados aproveitaram o caso para denunciar as “tentativas de interferência política” e defender a aprovação da PEC 412, a prever autonomia financeira e administrativa à PF.

Representados pela Federação Nacional dos Policiais Federais, os agentes rejeitam a proposta, por entender que a iniciativa visa fortalecer ainda mais a figura do delegado, a quem estão reservados os postos de comando da corporação.

Na entrevista a seguir, Luis Antônio Boudens, presidente da Fenapef, expõe os riscos da autonomia excessiva a um braço armado do Estado, além de defender uma proposta que acaba com a divisão entre as carreiras de delegado e agente, modelo inspirado na estrutura do Federal Bureau of Investigation (FBI), a prestigiada polícia norte-americana. “Nenhum concurso público habilita um chefe.”

CartaCapital:  O risco de interferência política na Lava Jato é real?

Luis Antônio Boudens: Na verdade, todos os movimentos contrários à investigação tiveram efeito oposto ao desejado. Cai o político e a Lava Jato prossegue. O caso de Jucá é emblemático. A PF possui o suporte necessário para não haver interferência política. Temos um ciclo investigativo sistematizado, é praticamente impossível um político intervir sem se expor. Temos, portanto, autonomia investigativa.

CC: Os delegados aproveitaram a repercussão do caso para defender a PEC 412, que propõe a autonomia administrativa e financeira da PF.

LAB: Sim, eles procuram explorar qualquer evento político, qualquer vazamento dessas tentativas de interferência. É um movimento claramente corporativo, para fortalecer o cargo de delegado. Não por acaso, 90% dos policiais federais são contra a proposta. O texto original prevê dotar o órgão policial de mais poder, mas ele não será distribuído para toda a PF, ficará restrito a um grupo. Por si só, a proposta é perigosa por dar autonomia excessiva a um órgão armado, que poderá agir como bem quiser, a seu bel-prazer. Pior: afasta o controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público. Não bastasse isso, descobrimos a existência de um substitutivo com ameaças ainda mais graves.

CC: Que ameaças são essas?

LAB: O substitutivo prevê a possibilidade de o delegado pleitear diretamente à Justiça, sem o controle do Ministério Público. Uma medida cautelar, como a prisão preventiva, poderia ser requisitada diretamente ao juiz. Também abre a possibilidade de a direção da PF propor diretamente ao Legislativo a criação e extinção de cargos.

Com forte lobby no Congresso, os delegados podem reestruturar completamente a PF sem uma discussão mais ampla, até porque há a possibilidade de projetos tramitarem na Câmara e no Senado em caráter conclusivo ou terminativo, sem debate nos plenários das Casas. Foi o que aconteceu com a Lei no12.830, de 2013, a estender aos delegados de polícia o mesmo tratamento protocolar dispensado aos magistrados. Em Minas Gerais, um delegado chegou a devolver um boletim de ocorrência, preparado pela Polícia Militar, porque não lhe foi atribuído o tratamento de “Vossa Excelência”.

CC: Essa autonomia pretendida existe em outras nações?

LAB: Não existe paralelo no mundo com essa formatação. A intenção de garantir autonomia orçamentária é justa, até para evitar que uma operação não seja prejudicada por cortes de verbas. Mas é possível criar um dispositivo legal, como existe nas áreas da Saúde e da Educação, para preservar o orçamento da PF. Mas dar autonomia completa sobre a gestão desses gastos é absurdo, não existe em nenhum lugar.

CC: O que os agentes da PF pretendem com a PEC 361?

LAB: A proposta é criar uma porta única de entrada. Dessa forma, o crescimento do policial se dará por mérito, experiência e capacitação. Pretendemos resgatar o perfil policial, que se perdeu ao longo do tempo. Muitos enxergam a PF como trampolim para outras carreiras. Nosso concurso público é um dos mais caros e longos do País. A média de gastos por policial formado é de 100 mil reais. Muitos ficam interessados no salário inicial e na projeção da carreira, mas, quando ingressam, ficam desiludidos, não demoram a perceber a prevalência de um cargo sobre os demais.

Os peritos, por exemplo, precisam ter autonomia para o trabalho técnico e científico, mas estão sob o controle dos delegados, não podem fazer nada sem requisição formal. Outro problema é a lotação dos cargos. É comum enviar recém-formados para as fronteiras do Brasil. Um delegado novo pode ser destacado para Vilhena, em Rondônia, e chefiar um posto de fronteira sem a menor experiência. Não é raro ver novatos na chefia de agentes com mais de 20 anos de carreira, alguns deles com formação em Direito ou em outros cursos superiores, com pós-graduação.

CC: Como é organizado o FBI? O diretor do bureau é um ex-agente?

LAB: No FBI, a atividade-fim, de investigação, é carreira única. O diretor é alguém que ingressou como agente especial e galgou postos até chegar ao comando. Também há carreiras paralelas, mas na área administrativa. Precisamos dar maior eficiência à PF. Hoje, apenas 4% dos inquéritos instaurados são convertidos em denúncias pelo Ministério Público.

Um passo fundamental é construir uma carreira justa, com uma porta única de entrada, capaz de atrair quem realmente deseja ser policial. Hoje, afastamos esse perfil ao exigir uma formação inicial que muitos não podem alcançar por vontade própria. Em vez disso, contratamos “almofadinhas” do Direito sem a menor vocação para a função, muito menos para liderar. Nenhum concurso público habilita um chefe.

Fonte: Carta Capital