As recentes notícias dando conta da elaboração de lista tríplice por parte dos delegados de polícia federal a ser entregue ao Presidente da República para escolha do respectivo diretor-geral colocam à reflexão um dos temas mais caros ao Estado Democrático de Direito, que é a autonomia da polícia.
O tema vem sendo objeto de discussões em várias searas, institucionais ou não, e também de normatização específica, v.g., a Lei n. 13.057/14, que acresceu redação à Lei n. 9.266/96, verbis:
Lei n. 13.047, de 2 de dezembro de 2014 (conversão da Medida Provisória n. 657, de 2014)
Art. 1: A Lei n. 9.266, de 15 de março de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 2-A, 2-B e 2-C:
Art. 2-A: A Polícia Federal, órgão permanente de Estado, organizado e mantido pela União, para o exercício de suas competências previstas no § 1 do art. 144 da Constituição Federal, fundada na hierarquia e disciplina, é integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça.
Parágrafo único: Os ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado.
Art. 2-C: O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial.
Art. 2: O art. 2 e o § 1 do art. 5 da Lei n. 9.264, de 7 de fevereiro de 1996, passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 2-A: A Carreira de Delegado de Polícia do Distrito Federal, de natureza jurídica e policial, é constituída do cargo de Delegado de Polícia.
Art. 12-A: O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Governador do Distrito Federal, é privativo de delegado de polícia do Distrito Federal integrante da classe especial.
É da história constitucional que a polícia sempre significou uma atividade administrativa do Estado, e nunca jurídica, o que pode ser comprovado pela evolução semântica da própria palavra. Nessa linha evolutiva, a origem da palavra se encontra, na Alemanha, na segunda metade do século XV, e assumia as formas Polletzey, Pollucy, pollicei epollicey, que se relacionavam, primordialmente, com a boa ordem, o bom governo, a segurança, o interesse comum e a assistência fornecida pela autoridade[1]. Foi o embrião, portanto, daquilo que hoje se conhece como Administração.
A evolução semântica aqui descrita guarda estreita relação de pertinência temática com a formatação do Estado brasileiro positivada no artigo 1, caput, da Constituição, qual seja, Estado Democrático de Direito, fórmula expressa em norma que pode servir de parâmetro ao controle de constitucionalidade, conforme decisão nos HC 98.237[2] e 95.009[3] e que, em seu sentido material, e não apenas formal, significa a positivação de direitos fundamentais e de competências a serem exercitadas, discriminadamente, pelos órgãos estatais[4].
Decorre daí, em primeiro lugar, que a normatização da polícia como órgão permanente de Estado é inconstitucional, pois que a própria Constituição, em seu artigo 144, § 1, dispõe que ela é apenas um órgão permanente, mas não de Estado – aqui uma interpretação fina leva ao seguinte raciocínio: a lei não dispôs que a polícia federal é órgão permanentedo Estado, mas sim de Estado, o que quer dizer que um delegado de polícia pode, por exemplo, ser considerado como agente político, e não mais apenas um servidor público, consequência que, de sua vez, vai contra o próprio espírito da Constituição, que ao dispor sobre as polícias, o fez no Capítulo da Segurança Pública, conferindo-lhe um caráter exclusivo de prestação de um serviço público, e não de órgão estatal componente do por assim dizer núcleo duro do Estado.
Nesse quadro, e em segundo lugar, as funções da polícia, definidas na Constituição, são seis: a polícia ostensiva, a polícia de investigação, polícia judiciária, polícia de fronteiras, polícia marítima e polícia aeroportuária[5].
Pois bem, nenhuma dessas funções a serem exercidas pela polícia, previstas que estão no artigo 144 e parágrafos da Constituição, se caracterizam como sendo jurídica – a função de polícia judiciária significa que a polícia federal deve executar as diligências determinadas pelos órgãos judiciais.
As funções jurídicas vêm positivadas, de suas vezes, nos artigos 127 a 135, da Constituição, e se referem àquelas exercidas pelo Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública.
A topografia adotada pelo constituinte originário não inclui a polícia dentre as instituições que exercem funções essenciais à Justiça, visto que dispõe sobre sua organização e função no artigo 144, cujo título refere à Segurança Pública – não à toa, desde os primórdios, polícia não mantinha relação com o direito penal nem com o direito privado, mas apenas com aquelas atividades de caráter administrativo[6]. E essa forma de distribuição de matéria não é, por isso mesmo, casual.
É que o exercício dessa específica função jurídica remete, sempre e sempre, à ideia de presentação, ou seja, todas as instituições previstas constitucionalmente e que exercem alguma função jurídica representam alguém, pessoa física ou jurídica: o Ministério Público, a coletividade; a Advocacia Pública, a União; a Advocacia privada, os indivíduos; a Defensoria Pública, aqueles mais necessitados.
Neste passo é de se perguntar: e a polícia, a quem representa? A ninguém, a não ser ela mesma. E é a ninguém exatamente porque ela não exerce função jurídica, mas apenas administrativo-policial. Daí porque norma que preceitue exercer o delegado de polícia função jurídica ser inconstitucional.
De outra parte, a escolha para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal e da Polícia do Distrito Federal que recaia apenas sobre delegados integrantes da classe especial também é inconstitucional porque cria uma restrição ao Chefe do Executivo federal que não encontra símile na Constituição, desbordando do quanto positivado em seu texto.
Sobre essa questão é relevante destacar que a constitucionalização da segurança pública produziu a compreensão de que a polícia deve se estruturar administrativamente de acordo com o que preceitua o Texto Magno[7], o que quer dizer que a escolha a ser feita por quem competente para chefiar a instituição não pode ficar condicionada à manifestação de nítido caráter corporativo ou mesmo a critério que restrinja o poder ínsito a quem competente.
O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de decidir caso jurídico em que questão similar foi ventilada. Na ADI 952, MC[8], embora tenha havido indeferimento do pedido de concessão de medida liminar e posterior perda superveniente do objeto, uma vez questionado o artigo 106, § 1, da Constituição do Estado de Santa Catarina, esse Tribunal Supremo, por meio do voto do Min. Sepúlveda Pertence, sinalizou a inconstitucionalidade de parte da norma questionada referente expressamente à escolha do Chefe da instituição de polícia daquele Estado dentre delegados de final de carreira. Colhe-se do voto:
“6. É certo que, na sede específica da matéria, o art. 144, § 4, cedeu à onda corporativista e reclamou que a chefia, que a direção da Polícia Civil, coubesse a Delegados de carreira. No ponto, senhor Presidente, creio, no entanto, que não há espaço a restringir mais o campo deixado ao Governador, a quem, repita-se, se quis subordinar à polícia. Trata-se tipicamente da chefia de um organismo administrativo enfaticamente subordinado ao Governador.
7.A presunção lógica no sistema constitucional de provimento de órgãos similares é que se trate de um cargo em comissão, cuja clientela de escolha, no entanto, a Constituição restringiu aos Delegados de carreira. A meu ver, não poderia ir além a Constituição Estadual – é essa a primeira impressão – para restringi-la a Delegados de determinada classe da carreira”, destacou-se.
A medida liminar foi indeferida por maioria, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Relator, Sepúlveda Pertence e o então Presidente Octavio Gallotti, os quais a concediam parcialmente para suspender a expressão “final de” … carreira. Fruto ou não dessa forte sinalização pela inconstitucionalidade da norma, fato é que se procedeu a mudança do texto constitucional, para dele retirar a expressão “final de”, excluindo-se o caráter seletivo e restritivo do modelo então instaurado e causando a perda superveniente do objeto.
A nova redação do artigo 106, § 1, da Constituição do Estado de Santa Catarina foi objeto de nova ADI, de n. 3.038[9], julgada, à unanimidade, procedente, considerando-se inconstitucional nomear, para a chefia da Polícia Civil, delegado que não integre a respectiva carreira.
Da análise da jurisprudência que vem sendo construída pelo Supremo Tribunal a respeito do tema “polícia” pode-se perceber a atribuição e consolidação de sentidos das normas respectivas, v.g., artigo 144 e parágrafos, da Constituição, que refletem uma preocupação com a restrição da forma como a instituição se organiza. Exemplo do que vem de ser escrito são os seguintes julgados: ADI 882, ADI 2.710, ADI 1.182 e ADI 244.
Na ADI 244[10] o Supremo Tribunal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade do artigo 183, § 4, “b” e “c”, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que dispunha sobre a eleição de delegado de município pelos habitantes de determinado bairro, sua recondução e composição de lista tríplice, bem como sua destituição pelo Conselho Comunitário de Defesa Social.
Na ADI 1.182[11], o Supremo Tribunal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, do artigo 177, incisos I a IV, da Lei Orgânica do Distrito Federal, que preceituava que os órgãos de polícia eram relativamente autônomos.
Na ADI 2.710[12], o mesmo Supremo Tribunal declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade do § 1 do artigo 128, da Constituição do Estado do Espírito Santo, que restringia a escolha, pelo Governador do Estado, do Delegado-Chefe da Polícia Civil, à lista tríplice formada pelo órgão da representação da respectiva carreira, para mandato de dois anos, permitida a recondução.
E por fim, na ADI 882[13], o Tribunal Supremo declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade do artigo 3; da expressão “autonomia funcional” contida no artigo 4; do item 12 do § 2 do artigo 10; do § 3 do artigo 104; do artigo 114; e do inciso II do artigo 127, todos da Lei Complementar n. 20, de 14 de outubro de 1992, do Estado de Mato Grosso. Em geral, essas normas dispunham sobre a autonomia administrativa, funcional e financeira da polícia judiciária civil, bem assim de algumas prerrogativas inerentes ao cargo de agente político.
Com base nessas razões doutrinárias e jurisprudenciais pode-se afirmar que a atividade policial não é função jurídica, o que acaba por produzir consequência na compreensão errática de que esse órgão detém autonomia constitucional, à semelhança das carreiras típicas de Estado.
Fonte: Agência FENAPEF