Em 20 de setembro de 1871 nascia o inquérito policial no Brasil. Surgiu de uma reforma do então Código de Processo Criminal, percorreu o Brasil Imperial, entrou na Republica e apesar de todas as mudanças que o mundo passou, permanece o mesmo até hoje.
É no mínimo curioso um procedimento administrativo que atinge um dos bens mais importantes, a liberdade, nascer em pleno poder moderador, absolutista e, apenas aqui no Brasil, acompanhar o avanço da democracia na história do mundo, sem mudanças.
Foi na presença desse inquérito policial que o último enforcamento por crime comum no Brasil, um escravo, ocorreu em 1876, em Alagoas. Foi também com ele que o escravo Rufino Crioulo foi condenado a usar corrente de ferro nos pés e trabalhar acorrentado para o Governo por matar um “capitão do mato”[1].
A essência da construção da verdade real nos dias de hoje, produzida em cartório, inquisitorial e para iniciar uma “nova” ação penal, é a mesma do Brasil Imperial. E o maior índice de pessoas que se tornam réus através dele também são as mesmas: negros e pobres, só perderam o predicado escravocrata.
Talvez a forma que foi negociada o surgimento do inquérito explique sua longevidade. Um acordo entre as elites liberais, conservadoras e radicais, para dividir o poder em um sistema de “duplo inquérito”. Segundo Kant de Lima [2], de um lado um inquérito policial preliminar e de outro um inquérito judicial, também chamado “instrução judicial”.
Esse equilíbrio de forças formado pela divisão do poder existe até hoje. O que mudou, mais uma vez, foi o predicado das elites. Há no Brasil uma luta para manter, ou aumentar, o poder dos responsáveis pela busca incansável da verdade real, que carrega enorme prestígio na sociedade brasileira onde impera a Civil Law.
De acordo com Oliveira:
“Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal.” [3]
Nesse contexto, os números produzidos pelo Inquérito Policial no Brasil mostram sua verdadeira face. Apenas para elencar um exemplo, entre tantos, já consagrado pela qualidade científica, tomando por base a cidade do Rio de Janeiro, segundo Michel Misse [4], apenas 1,8% das ocorrências policiais de roubos chegaram até o Ministério Público.
Assim como apenas 8%, dos 60 mil homicídios ocorridos no país por ano, em média, são esclarecidos, segundo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da pesquisa Mapas da Violência, divulgada pelo Ministério da Justiça.
Além disso, dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2014, indicam que 61,6% da população carcerária do Brasil são negros (pretos e pardos).
O inquérito policial é o instrumento comum entre esses números, responsável pela baixa elucidação dos crimes, além de instruir a ação penal para encarcerar autores de crimes, excetuando brancos e ricos.
Com a pobreza dos números produzidos pelo inquérito policial, aumentaram substancialmente, nas ultimas décadas, a produção científica e projetos legislativos em busca de uma solução para este longevo procedimento administrativo. Porém, até agora não conseguiram romper as forças e não houve avanço no campo prático.
Talvez, precisássemos de um novo acordo de forças para a solução procedimental da instrução penal no Brasil, desta vez, com a inserção de um novo predicado, o sofrimento do povo.
Enquanto isso, o inquérito policial faz hoje 145 anos, cheio de predicados, sem razões para comemorar seu aniversário.
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[1] Apeb. Processo-crime de 03/06/1860, fl.6. Est. 13, Cx. 446, doc. 3, fl.5 – pena arbitrada em 1873.
[2] Kant de Lima, Roberto. A Polícia na Cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacellide. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.
[4] MISSE, Michel (organizador). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink, 2010.
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*Marcio Bastos é policial civil do Rio de Janeiro, formando em Tecnólogo de Segurança Pública e Social pela UFF/RJ.