Não foi o melhor momento para o gaúcho José Mariano Beltramepedir para sair da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro. Na véspera do anúncio de sua demissão, moradores de Copacabana, Lagoa e Ipanema, área nobre da cidade, foram sacudidos por um tiroteio na favela Pavão-Pavãozinho que deixou três suspeitos mortos. Um deles despencou de uma encosta, provavelmente atingido por um tiro disparado do helicóptero da polícia. Bandidos e traficantes da favela haviam atacado com fuzis a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na manhã de segunda-feira (10), numa ousadia cada vez mais frequente. O comércio fechou, ruas foram bloqueadas. Parecia o Rio de uma década atrás, antes de Beltrame assumir.
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Mesmo após essas cenas de guerra à luz do dia, junto a um dos metros quadrados mais caros da cidade, Beltrame deixa o cargo aos 59 anos com popularidade alta, atingida apenas de raspão por estilhaços. Qual é a explicação? Num ano em que todos os números da violência no Rio voltaram a aumentar – roubos a pedestres, assaltos seguidos de morte, homicídios, balas perdidas, arrastões, execuções brutais de policiais, assassinatos de crianças e adolescentes em invasões e confrontos –, como entender que Beltrame continue a ser uma referência positiva?
>> Dez anos de BeltrameBeltrame era visto como um xerife incorruptível e técnico, sem veleidades políticas, sem meias palavras, mas aberto a diálogos com sociólogos, antropólogos e a sociedade. Pela primeira vez havia no comando da Segurança alguém disposto a retirar fuzis das mãos de policiais, criar cursos de filosofia para a tropa, discutir a legalização das drogas, defender a inclusão social e a união gay. “Quanto mais cidadania você dá”, disse a ÉPOCA em entrevista na quinta-feira, “menos polícia você necessita.” Beltrame era tão tímido em seu antigo posto na inteligência da Polícia Federal que, ao assumir a secretaria em 2007, fugia correndo quando via jornalistas: “Não tenho nada para falar”. Com o tempo, no entanto, começou a ser aplaudido em churrascaria, teatro e show de Roberto Carlos. Virou pop. Não tinha vergonha de pedir ajuda a empresários como Eike Batista para financiar uma UPP.
“Muitas vezes pensei em passar o bastão, quando me sentia desiludido”, admite Beltrame, “mas a vontade de fazer era maior que a vontade de largar.” Foram quase dez anos de teimosia, dedicação e discrição no comando da Segurança do Rio, um recorde. Sua saída foi marcada para depois da Olimpíada. Diz que por cansaço, não porque uma dramática falta de recursos ameaça deixar policiais sem salário. “Se crise financeira fosse motivo para sair, eu não teria nem assumido em 2007. Claro que eu seria leviano se dissesse que a crise não influi no desempenho, neste momento em que você não tem gasolina para levantar um helicóptero, não tem ração para dar aos cães, não tem dinheiro para manutenção de blindados.” Longe desses problemas, Beltrame já tem marcadas palestras sobre segurança pública em Harvard, nos Estados Unidos, e em Viena, na Áustria.
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Com a inseparável cuia de chimarrão, o cabelo com corte militar, o sotaque cantado, Beltrame foi um estranho no ninho. Formado em administração e Direito, ex-chefe da Interpol acostumado às sombras, sua primeira ação em campo em 2007 como secretário de Segurança do Rio de Janeiro foi típica de um “caveira” linha-dura: a polícia matou 19 pessoas na invasão do Complexo do Alemão. Não se arrepende. “Havia no Alemão naquele tempo bandidos que queimaram pessoas vivas num ônibus na Avenida Brasil e queriam nos intimidar porque removi presos para penitenciárias de alta segurança”, diz.
A filosofia do confronto foi questionada e nasceu a UPP, inspirada em modelo aplicado na Colômbia. Beltrame foi a Bogotá e Medellín para aprender com erros e acertos e adaptar o projeto. O Rio passou a respirar com mais leveza e menos temor. As ocupações das favelas, muitas sem disparar um tiro, deram ilusão de tranquilidade. Os traficantes se recolheram ou fugiram, a ostentação de armas sumiu das áreas “pacificadas” e os moradores colaboravam com os policiais das UPPs. Em festas de debutantes organizadas pela Secretaria de Segurança, Beltrame era disputado como par pelas jovens das “comunidades”, nome que substituiu “favelas” na onda politicamente correta. Ele se orgulha de ser um bom pé de valsa, treinado nas festinhas em Santa Maria, sua terra de vento e frio no Rio Grande do Sul, sede de infantaria blindada. Olho azul escondido pelas lentes grossas de óculos, lábios finos, ria desajeitado com a atenção. Engolia em seco ao receber homenagens de famílias carentes até do direito de ir e vir, reféns de bandidos e milicianos.
O Rio passou a ter a esperança de, um dia, olhar a Cidade Partida como uma nódoa do passado. As 38 UPPs perseguiam uma prioridade: salvar vidas. Em 2007, quando assumiu, a cidade do Rio registrou 37,8 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. No ano passado foram 18,5, queda bastante significativa. Mas os homicídios voltaram a aumentar de forma alarmante em 2016. As UPPs começaram a cair em desgraça, tachadas de caras. Mortes de inocentes em confrontos e o desaparecimento do auxiliar de pedreiroAmarildo de Souza na Rocinha, levado por policiais da UPP em 2014, macularam a imagem da política de pacificação. “Agora é assim, ressurge a velha retórica. Atira pedra na Geni, na polícia. Mas ai do Rio se a gente recuar na pacificação. Claro que a polícia tem defeitos, mas o problema maior é de quem pulou do barco”, diz Beltrame. “Eu entrei [nas áreas dominadas pelo tráfico], mas eles [os outros órgãos do Estado] não foram atrás. Não fizeram a estradinha porque tinha ali um cara com fuzil? Mentira. Vai lá e faz a estradinha. Faz a urbanização. Faz o saneamento, a creche, o posto médico. A paz exige o entrelaçamento de esforços.” Nas favelas, 87% apoiam as UPPs, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas.
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A confiança nas UPPs virou voto de fé. Beltrame – conhecido por amigos e parentes como Mariano – e a mulher, Rita, são católicos, frequentam missa semanal e tentam ir todo ano ao santuário de Nossa Senhora Aparecida. O filho temporão, Francisco, está com 7 anos. Beltrame sai “com a consciência tranquila”, mas com uma frustração: “Esperava deixar o Rio mais pacificado do que está”. Sempre que a dor na coluna lombar permite, ele corre na Lagoa Rodrigo de Freitas, vigiado por seguranças à paisana. Beltrame recebeu 51 ameaças de morte ao longo destes dez anos. “Foi o que consegui contar, quando comecei a juntar os cacos para sair nesta semana”, afirma. A segurança particular continuará intacta. A do Rio ficará a cargo de seu substituto, o delegado Roberto Sá. “Foi escolhido, fabricado e produzido por mim”, afirmou Beltrame. “E está muito mais descansado.”
Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/10/jose-mariano-beltrame-o-homem-que-enfrentou-os-facinoras.html