Nascida da conversão da polêmica Medida Provisória 657/2014, a Lei 13.047/2014 modificou o artigo 2º da Lei 9.266/96, estabelecendo, em seu parágrafo único, que os “ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado” (grifamos).
Sem qualquer impacto positivo sobre os sofríveis índices de elucidação criminal ostentados pelo Brasil, a referida lei teve, na prática, o condão de diminuir a relevância das atividades desempenhadas pelos demais integrantes da carreira policial federal (agentes, escrivães, papiloscopistas e peritos) que vêm, há anos, tentando tirar da informalidade as complexas atividades que exercem no desenvolvimento da investigação criminal, das polícias administrativa e de soberania.
Além disso, essa manobra de ocupação de todos os espaços do órgão pelos delegados, inclusive com a “apropriação” do lucro social de todo o trabalho de investigação realizado pela Polícia Federal, aprofundou o clima de desmotivação entre os policiais mais experientes, fazendo com que muitos se afastassem das atividades investigativas, por não verem reconhecidas, em âmbito legal e institucional, as as atribuições que desempenham de fato.
Em que pese essas distorções já estarem sendo devidamente tratadas em âmbito de Ação Direta de Inconstitucionalidade[1], importa realizar uma reflexão a respeito do que realmente significa o predicado “jurídico”, introduzido pela lei em questão.
É comum, na doutrina jurídica, a expressão de que “na lei não contém palavras inúteis”. No entanto, seja no meio policial, seja no meio jurídico, fica a indagação: o que significaria um cargo policial ostentar essa tão festejada “natureza jurídica”? Seriam agora os delegados, além de policiais, sujeitos processuais e operadores do Direito, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro?
Analisando-se a legislação pátria, conclui-se que os delegados de polícia, civil e federal, não integram a relação processual, não têm (e não devem ter) o jus postulandi e não são mencionados pelo Capítulo IV da Constituição Federal, como essenciais à Justiça. A Doutrina brasileira, ao tratar do inquérito policial, o classifica como “um procedimento de índole eminentemente administrativa, de caráter informativo e preparatório da ação penal, sendo regido pelas regras do ato administrativo em geral”[2]. Todos os elementos colhidos pela polícia nesta fase são submetidos ao crivo do Ministério Público (titular da ação penal),m sob controle do Judiciário. Se oferecida e aceita a denúncia, com base naquele procedimento, os elementos que a baseiam serão submetidos ao contraditório, sem que o delegado de polícia possa interferir na marcha processual. Além disso, como é sabido, o inquérito é dispensável, ex vi dos arts. 4º, p. único, 27 e 39, § 5º do CPP.
Autorizadas vozes da doutrina e da jurisprudência também já se posicionaram no sentido de que nem mesmo o indiciamento, carreado de pompa e circunstância pela Lei 12.830, tem qualquer relevância jurídica no âmbito da ação penal.
Fora da seara processual, há outra questão a ser considerada quanto a esse tema. O fato de o delegado de polícia presidir o inquérito policial não faz dele um operador jurídico, nos termos pretendidos por aqueles que ovacionam a Lei 13.047/2014. Não é o fato de a atividade da polícia estar adstrita aos termos da Constituição, da legislação penal, processual penal e administrativa – por si só – fator legitimador de um status de “natureza jurídica” à atividade desempenhada pelo delegado ou a qualquer outro ocupante dos cargos da carreira policial federal. No Estado de Direito, toda atividade de um agente público estatal deriva da lei e nela deve estar balizada. Por esse motivo, esses agentes devem conhecer as regras jurídicas que norteiam suas atividades e devem manejá-las com o propósito perseguir os objetivos do órgão a que estão vinculados, sempre visando o interesse público.
Assim, a título de exemplo e comparação, pode-se afirmar que um Analista do IBAMA ou um policial integrante da Polícia Ambiental, têm toda a sua atuação pautada na legislação ambiental; os servidores da Receita Federal atuam de acordo com a complexa legislação tributária brasileira; os servidores do INSS atuam de acordo com a extensa legislação previdenciária. Ou seja, em cada área de atuação estatal que se pensar, haverá uma legislação específica a balizar a atuação dos agentes públicos incumbidos de agir em nome do Estado. Por este motivo, para exercer suas atribuições, esse agente precisa conhecer o arsenal jurídico que rege a sua atividade, pois o princípio da legalidade é um imperativo decorrente do artigo 37 da Constituição Federal. Assim, esse atividade tem uma natureza jurídica, porém, administrativa.
O Próprio Conselho Nacional de Justiça, considera as funções desempenhadas pelos escrivães e agentes federais da Polícia Federal como atividade jurídica para os fins e nos termos da Resolução 11 do CNJ.
Nesse sentido, vale apontar o voto do Eminente Relator, Ministro Cláudio Godoy, proferido no Pedido de Providências 1238/CNJ[3]:
“Por um lado, a atividade investigativa está a pressupor conhecimento das normas próprias que regem a coleta de provas ou a efetivação de diligências como de prisão, apreensão, e outras do gênero. De outra parte, se toda a gama dessas atividades se destina a apurar a prática de um delito e sua autoria, decerto que ainda aqui a utilização de conhecimentos técnicos, legais, jurídicos, é uma constante”.
Em que pesem todas essas considerações, não se notam movimentos de agentes policiais ou integrantes de outras carreiras invocando para si o status de integrante de “carreira jurídica e investigativa” ,“carreira jurídica e tributária”, “jurídica e ambiental”, “jurídica e previdenciária”… O que subjaz da positivação do predicado “jurídico”, é uma pauta que se revela em inúmeras propostas de alteração legislativa, de cunho eminentemente corporativista, a beneficiar os delegados de polícia, que há tempos vêm tentando se equiparar, em termos funcionais e salariais, aos membros do Ministério Público e da Magistratura.
Essa pauta ganha materialidade, por exemplo, no conteúdo da PEC 443/2009, que vincula os vencimentos de Advogados da União e de Delegados Federais aos dos ministros do STF; no da PEC 89/2015, que transforma delegados de polícia em juízes de garantias; pela PEC 412/2009, que confere autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de elaborar sua proposta orçamentária pela Polícia Federal; pela já mencionada Lei 12.830/2012, que confere aos delegados de polícia o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados.
Como se percebe, o cerne dessa questão perpassa pela obtenção de mais poder e vantagens remuneratórias por parte dos delegados de polícia, sem que isso se reflita em avanços na segurança pública ou na persecução criminal.
Por outro lado, a manutenção do status “policial” também esconde outra preocupação corporativa, qual seja, a manutenção de benefícios previdenciários inerentes à atividade policial, consistente na aposentadoria especial, nos termos da Constituição Federal.
Percebe-se, pois, que a positivação do termo “natureza jurídica” não carrega em si qualquer conteúdo defensável. No entanto, as entidades representativas dos delegados de polícia insistem em valorizar essa atividade, como se percebe do artigo publicado do artigo publicado em 2014 pelo delegado João Thiago de Oliveira Pinho[4], então diretor da Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF). No referido trabalho, ao comparar o cargo de delegado de polícia federal com o de Agente Especial do FBI, o autor ressalta que “os delegados brasileiros realizam atividades que são desempenhadas, nos Estados Unidos, somente por membros do Ministério Público e do Judiciário, como lavratura de prisão em flagrante, representações por medidas cautelares e condução de investigações judicializadas”. Os argumentos manejados pelo autor são justamente os dados que nos conduzem à conclusão de que o modelo brasileiro é absolutamente equivocado, pois o que se valoriza aqui é a elaboração atos instrumentais e arrazoados de natureza jurídica, em detrimento da atividade fim, com o emprego de métodos e técnicas específicas de busca de elementos úteis para a investigação criminal. Lá, os agentes do FBI fazem exatamente o que fazem os agentes da PF: Vão a campo, infiltram-se em organizações criminosas, têm contato direto e imediato com a realidade e com os elementos de prova por eles mesmo colhidos. Esse nosso modelo ímpar, com a supervalorização de atividade instrumental, em detrimento da material, tem gerado perversos frutos para a sociedade brasileira, que são claramente percebidos na escandalosa escalada da criminalidade, inversamente proporcional aos vergonhosos índices de elucidação criminal brasileiros[5], estacionados entre as piores colocações do mundo.
A atividade policial não é uma atividade jurídica, mas uma atuação técnica, que emprega métodos e conhecimentos específicos e interdisciplinares para a colheita de provas juridicamente válidas. Assim, como todo e qualquer policial deve conhecer a legislação que rege a sua atividade e atuar dentro das normas do Estado de direito. Esse é o pressuposto mínimo para que a investigação seja útil e válida para a Justiça Criminal. Além disso, o conhecimento da legislação que rege a segurança pública e a investigação criminal é um fator gerador de direitos humanos, na medida em que uma atuação sob o corolário da lei e do Direito é promovedora de cidadania e de paz social. Por esses motivos, o conhecimento jurídico inerente a qualquer atividade estatal deve ser apropriado por todos os policiais que, em essência, devem agir como garantidores dos direitos do cidadão.
Apesar da clareza dos descompasso do modelo brasileiro com o que ocorre no resto do mundo, isso não parece evidente para os legisladores brasileiros e para gestores da nossa segurança pública, pois o que se nota é o distanciamento das recentes alterações legislativas em matéria de segurança pública da necessidade de uma profunda reforma das instituições policiais. Essa reforma deve aproximar as polícias brasileiras da estrutura daquelas existentes em países com índices de elucidação criminal mais aceitáveis; ou seja, onde a meritocracia, a experiência e os conhecimentos multidisciplinares são o instrumental para a consecução da eficiência da investigação e o caminho natural para ascensão dos policiais mais capazes e experientes aos postos mais elevados da hierarquia de sua instituição. A visão de que função policial deve ser exercida apenas sob o jugo da hierarquia e disciplina, por puro senso de cumprimento do dever, com amor e abnegação, é uma excrescência do período ditatorial, inadequada à vigente ordem constitucional.
Fonte: http://www.fenapef.org.br/natureza-juridica-na-seguranca-publica/