O presidente do Senado, Eunício Oliveira, passou a noite de terça-feira (25) negociando o texto da lei de abuso de autoridade. Entre conversas com senadores na residência oficial e telefonemas, a costura do texto se estendeu pela madrugada. Depois de jantar com o líder do PMDB, senador Renan Calheiros, Eunício ligou para mais de 40 senadores. A tarefa árdua era chegar a um consenso sobre o texto que seria votado na manhã seguinte. Nas primeiras horas da quarta-feira, Eunício tinha uma nova redação. Já era madrugada quando falou com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot. A versão que iria à votação na manhã seguinte, primeiro na Comissão de Constituição e Justiça, depois em plenário, estava mais próxima àquela levada pelo procurador ao Senado no mês passado.
As intensas negociações deram resultado. Eram 19 horas de quarta-feira (26) e a votação não havia sido encerrada quando Eunício comemorou o resultado no plenário. “Eu acho que o dia de hoje seguramente marcará a história do Senado Federal e do Brasil. Por meio do diálogo, do exercício da política, da boa política, missão para a qual o povo nos colocou aqui, esta Casa, no dia de hoje, tomou, no meu entendimento e da maioria dos senadores, duas importantíssimas decisões”, disse o presidente. Minutos depois, ao contrário da tradição de encerrar as sessões quando algo importante é aprovado, Eunício anunciou que havia mais. Os 75 senadores presentes (um a mais do que a votação anterior) rapidamente votaram por acabar com o foro privilegiado, a benesse que garante a parlamentares e autoridades do Executivo e Legislativo o direito de ser julgados apenas em tribunais superiores.
A aprovação das duas matérias na mesma sessão constitui mais um movimento na estratégia de reação da cúpula do Congresso ao avanço da Operação Lava Jato. É certo que os senadores temerosos das investigações tiveram de recuar no projeto contra o abuso de autoridade. Ao mesmo tempo avançaram para cima do Judiciário e do Ministério Público na questão do foro. No saldo final, deixaram a turma da investigação mais exposta a punições e agora querem que ela também perca o privilégio de acesso aos tribunais superiores.
O Projeto de Lei de abuso de autoridade é a mais clara reação à Lava Jato já perpetrada pelo Congresso. Estava engavetado no Senado desde 2009. Voltou à pauta em meados de 2016, por iniciativa do então presidente do Senado, Renan Calheiros, quando o procurador-geral da República pediu a prisão de senadores do PMDB – inclusive de Renan –, por fatos surgidos na Lava Jato. A prisão não foi autorizada pelo Supremo e Renan ganhou adeptos imediatos e estridentes em uma Casa com 24 integrantes seriamente enrolados na investigação. Ficou claro que o objetivo era atacar e intimidar quem incomodava os poderosos.
A discussão da matéria se arrastou desde que entrou na pauta da CCJ do Senado, com modificações, bate-bocas e pedidos de vista. O acordo costurado por Eunício Oliveira na semana passada flexibilizou alguns pontos e aproximou a versão final da proposta pelo Ministério Público Federal. Mas ainda deixa brechas para “enquadrar” a ação de procuradores e delegados. “As alterações promovidas representam uma vitória dos parlamentares moderados e merecem elogios. O texto aprovado ainda merece críticas pontuais, mas alguns receios mais graves foram afastados”, afirma o juiz Sergio Moro. Interlocutores dizem que, para Janot, a proposta atendeu a cerca de 80% das modificações apresentadas ao Senado. Entre as mudanças, a principal foi a retirada do termo “razoável” em um trecho escrito pelo relator, o senador Roberto Requião, do PMDB do Paraná. O texto original do relator previa que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade”. Segundo juízes e procuradores, a redação dúbia abria espaço para que eles fossem punidos por causa de sua atuação em processos a partir de queixas apresentadas com base em suas interpretações da lei. Em substituição, foi acrescentada uma exigência para comprovar que a autoridade em questão teria o objetivo de “prejudicar” alguém.
Se por um lado o Senado cedeu às críticas da PGR e de algumas entidades da magistratura, por outro radicalizou na discussão sobre o foro privilegiado. A proposta de extinção não estava prevista entre os projetos que seriam votados. A previsão era que a Comissão de Constituição e Justiça discutisse e aprovasse na manhã daquela quarta-feira apenas o texto sobre lei de abuso. Na sequência, o plenário deliberaria sobre o tema, que então seria enviado à Câmara, como de fato ocorreu. De forma atabalhoada, porém, depois disso, senadores fizeram uma ampla negociação para avançar a questão do foro. Assim, o plenário aprovou por unanimidade, ainda que só em primeiro turno, a proposta de emenda à Constituição que restringe a prerrogativa de foro apenas aos presidentes dos Poderes. Todos os 594 parlamentares passarão a ser julgados na primeira instância, como todos os cidadãos comuns.
É óbvio que não se trata de um ato extemporâneo de republicanismo, um rompante de desapego dos senadores. Poucos deles estão dispostos a abrir mão da proteção conferida pela menor velocidade dos julgamentos no Supremo. “Se acabar o foro, é para todo mundo. Suruba é suruba. Aí é todo mundo na suruba, não uma suruba selecionada”, disse o senador Romero Jucá, quando Barroso apresentou sua proposta de restrição do foro. A atitude intempestiva da semana passada foi, portanto, um recado sonoro dos parlamentares. Hoje, cerca de 35 mil pessoas têm direito a ser julgadas por tribunais superiores. Se a matéria chegar ao final como foi aprovada na semana passada, praticamente todas perderão essa condição. As palavras pouco sofisticadas de Jucá queriam dizer na prática que, se os parlamentares passassem a ser julgados na primeira instância, assim também seriam conduzidas as investigações envolvendo ministros do Supremo e procuradores. As palavras de Jucá foram traduzidas em voto na última semana.
A medida é muito mais abrangente do que a proposta levada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, à presidência da Corte, pela qual apenas crimes que tenham ocorrido durante o mandato ou que estejam relacionados ao cargo ou à função da autoridade sob suspeita sejam julgados no STF. A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, pautou a análise da proposta de Barroso para o dia 31 de maio. Se a proposta for aprovada, ficará com o Supremo, por exemplo, boa parte dos processos da Lava Jato. Já se a PEC aprovada preliminarmente no Senado for promulgada, até essas ações podem ir para a primeira instância – um pesadelo para os parlamentares.
Senadores admitem que a aprovação expressa é uma tentativa de chamar a atenção do Supremo. Na política, é preciso dar sinais de seus movimentos – alguns deles podem ser bastante estrondosos, como o da semana passada. Além de apelar ao sentimento corporativista de outras autoridades, o Senado diz ao Supremo que não é o plenário dos 11 togados o local ideal para discutir a matéria, e sim os tapetes azul e verde do outro lado da rua.
Um indicativo de que a intenção não é levar adiante o projeto da forma como está é que um tema tão controverso foi aprovado sem discussão. Em plenário, quando o presidente Eunício Oliveira abriu para o debate, nenhum senador se inscreveu. “Acabamos com o privilégio do foro de prerrogativa de função, atendendo ao clamor popular, que nos reclamava isso havia anos. Acabamos com o foro dito privilegiado não para os 600 parlamentares e ministros, mas para todas as 35 mil pessoas que detêm direito a essa prerrogativa por função, do vereador ao membro do Conselho Nacional de Justiça”, disse Eunício. “Ao mesmo tempo, regulamos o combate ao abuso de autoridade, uma excrescência que afeta o cidadão diariamente, a chamada carteirada na fila do cinema, os maus-tratos nas prisões, nas delegacias, o vazamento criminoso de informações sempre sigilosas.”
Por se tratar de matéria constitucional, o texto ainda terá um longo caminho, do qual dificilmente sairá incólume. Precisará passar por nova análise do plenário do Senado, onde são necessários os votos de três quintos dos senadores. Na sequência, o texto será encaminhado à Câmara, onde passará por comissões e depois pela dupla análise do plenário. Provavelmente isso não ocorrerá antes do dia 31 de maio, quando o Supremo deverá discutir a proposta de Barroso. Para alguns magistrados, que defendem a restrição da prerrogativa de foro, a votação no Senado pode servir apenas para bloquear a discussão no Supremo, já que ministros podem pedir o adiamento da pauta alegando que o tema está em discussão no Congresso. Enquanto isso, políticos ainda terão tempo para aguardar o avanço das investigações que pesam contra si.
Fonte: http://epoca.globo.com/politica/noticia/2017/05/vem-comigo-viver-sem-foro.html