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11/08/2018

Tropa em choque: em três anos, pelo menos 21 PMs cometeram suicídio no estado

O primeiro foi o soldado da Polícia Militar Ismael Ramos, lotado na cidade de Santa Bárbara. Depois dele, veio o soldado Salmo Albuquerque, que trabalhava em Caetité. O caso do soldado Marcelo dos Santos Alves aconteceu em via pública, na cidade de Ruy Barbosa. Ele tinha saído de uma festa que comemorava os 15 anos de formatura de sua turma de soldados. Já o soldado Leonardo Tosta morreu em casa, na Boca do Rio, em Salvador.

A cabo Carina Santos de Assis Carvalho, 40 anos, que tirou a própria vida na sede da companhia onde era lotada, em Pau da Lima, e cujo caso veio à tona na quinta-feira (9), não foi, portanto, o primeiro de 2018. Um capitão teria sido a sexta vítima, ao tentar se matar também onde trabalhava, em Salvador, mas foi impedido por colegas que estavam de serviço.

As histórias de cada um desses policiais revelam uma realidade que nem sempre é divulgada: PMs com a saúde mental abalada, um cotidiano de constante pressão e assistência psicológica limitada. Em três anos, entre 2016 e 2018, foram 21 suicídios de policiais militares, de acordo com a Associação de Policiais e Bombeiros e de seus Familiares do Estado (Aspra). 

 

O major Edno Santana, coordenador de uma oficina de prevenção do Departamento de Promoção Social da PM, explica que, desde 2006, a média é que cinco policiais militares cometam suicídio por ano. 

Entre os transtornos mentais mais frequentemente associados ao suicídio, de maneira geral, estão a depressão (a principal), a esquizofrenia e a dependência química, de acordo com a psicóloga Soraya Carvalho, coordenadora do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (Neps), do Centro Antiveneno da Bahia (Ciave), ligado à Secretaria Estadual da Saúde (Sesab). 

Ela afirma que o suicídio não deve ser reduzido a uma única causa. Há questões internas, genéticas e externas – aquelas consideradas ‘gatilhos’. 

“A profissão de policial é muito difícil, porque lida a todo tempo com risco de vida. Há uma cobrança muito grande, a remuneração é ruim e a pessoa passa o dia todo envolvida entre a vida e a morte. Por outro lado, tem um desgaste familiar porque a pessoa se afasta da família muitas vezes e também há uma frustração pela perda de amigos em combate. Isso tudo contribui”, analisa Soraya. 

Nem sempre esses sinais são conhecidos. Em nota enviada ao CORREIO, a PM informou que a cabo Carina nunca passou pela junta médica da corporação com histórico de transtorno mental. Ela até participou do programa de controle médico realizado no ano passado e não foi encontrado nenhum problema relevante para a saúde dela e nenhum quadro psicológico diferente. 

Atendimento
Hoje, em toda a corporação, segundo fontes ligadas à PM, existem 12 psicólogos para atender uma tropa composta por 31.167 policiais na ativa (a Aspra, porém, afirma que são apenas três). Muitos policiais, porém, criticam o serviço. Os psicólogos são oficiais e, portanto, ‘chefes’ de praças, como cabos e soldados. Isso faria com que os atendidos não se sentissem à vontade. Assim, recorrem a psicólogos particulares ou a serviços oferecidos por entidades como a Aspra. Mesmo assim, a maioria não busca ajuda profissional. Soraya Carvalho afirma que essa hierarquia compromete o curso do atendimento (veja entrevista na íntegra).

Não é incomum que as próprias entidades sugiram o acompanhamento: em alguns casos, o PM vai buscar assessoria jurídica e, no contato com os funcionários, alguém percebe e sugere o tratamento. Para a psicóloga clínica Uelda Santos, que coordena o atendimento na Aspra, a diferença entre os PMs e os pacientes com outras profissões é exatamente a negação. Se recusam a fazer tratamento. 

“Eles não podem demonstrar nem para os superiores, nem para os colegas, que estão fazendo atendimento psicológico, porque isso demonstra fraqueza. A própria profissão faz com que tenham que ter essa postura dura, rígida”, afirma a psicóloga. 

As nuances da atividade profissional costumam ser uma queixa frequente, no discurso dos atendidos. “Se ele briga com a família um dia, ele não pode ficar no cantinho dele quando chega no trabalho. Ele tem que ir para rua cuidar dos problemas do cidadão, interagir com o comandante, com os colegas. Muitas vezes, eles não conseguem controlar isso e a válvula de escape é a bebida, jogo e, ainda, o suicídio”. 

Prevenção
No ano passado, foram sete suicídios na corporação, segundo a Aspra. Em 2016, foram nove. Mas a situação hoje é pior do que há poucos anos. Em 2013, o CORREIO mostrou que o número de três suicídios naquele ano alarmava até mesmo a própria PM. 

Era um problema com o qual tinham que lidar – e precisavam prevenir. Por isso, em 2016, o Departamento de Promoção Social da PM criou a “Oficina de capacitação para agentes multiplicadores em qualidade de vida para a prevenção da depressão e do suicídio”.

“Nós trabalhamos com práticas integrativas, fazemos oficinas com psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos, educadores físicos, nutricionistas, enfermeiros. Temos arte-terapia do origami, prática de slackline que ajuda o corpo e amente e a iogaterapia, que fortalece o indivíduo”, explica o major Edno Santana. 

Esse curso é destinado a policiais que tenham um perfil observador e que tenham a pré-disposição para ajudar outras pessoas. Ou seja – não é necessariamente para aqueles que têm algum transtorno psicológico, embora isso possa acontecer.

O objetivo é formar ‘multiplicadores’ do que foi aprendido nas aulas. “Essas pessoas vão ser aquelas que vão ajudar, vão notar qualquer indício (de ideação suicida) e informar ao comandante, ao diretor, que fulano ou beltrano está precisando de algum tipo de ajuda”, diz. 

Desde 2016, já foram formados 560 PMs em Salvador e no interior do estado. O curso é gratuito e dura uma semana – a cada mês, é realizado em uma localidade. 

Além disso, a PM informou que tem uma ação de "grande relevância ocorrendo" no combate ao estresse. "A PM-BA é pioneira no país na celebração de uma parceria com a organização humanitária internacional Arte de Viver para promover a capacitação do profissional policial militar para gerenciar o estresse através de técnicas de respiração. Até o momento foram capacitados cerca de 800 policiais. A meta, nessa nova etapa do projeto, é alcançar 6.000 policiais militares. Os depoimentos dos profissionais que participam do projeto são impressionantes e o resultado é transformador na qualidade de vida dos que mantém a utilização das técnicas após a capacitação". 

Índices baixos
A PM não confirmou quantos suicídios foram cometidos na corporação, nos últimos dez anos, nem quantos policiais foram afastados por transtornos psicológicos. No entanto, destacou, em nota, que os índices estão entre os mais baixos do estado e que foram realizados trabalhos preventivos nos últimos anos.

“É claro que gostaríamos que nenhum caso (de suicídio) acontecesse na nossa instituição e é para isso que nos últimos anos foram realizados trabalhos preventivos como palestras e seminários no intuito de priorizar a prevenção a esse ato”, disse a corporação na nota.

Procurada, a Polícia Civil não respondeu aos questionamentos quanto à realidade da corporação.

Incidência entre os praças
Para especialistas, a tendência é de que o comportamento suicida seja maior entre policiais. Essa foi uma das razões para a publicação do livro Por que Policiais Se Matam?, em 2016. O livro é resultado de um estudo conduzido pela professora Dayse Miranda, doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

A pesquisa envolveu 224 entrevistas de integrantes da Polícia Militar do Rio de Janeiro e conseguiu identificar fatores sociodemográficos, institucionais, organizacionais, relacionais e individuais para as tentativas e as ideias de suicídio. 

O estudo mostrou que cabos eram a patente que mais cogitou suicídio no Rio de Janeiro (46%). Logo em seguida vinham sargentos (36%) e soldados (14%). Entre os que chegaram a tentar algum ato suicida, 50% eram sargentos; 41% cabos e 5% soldados.

Isso não surpreende o coordenador da Aspra, Marco Prisco. De acordo com ele, a pressão ‘vai descendo’ a escala de patentes. “Quem sofre é a ponta, que é o policial da rua. Eles sofrem muito. Às vezes, a sociedade vê um policial estressado na rua, mas não quer saber as causas, só as consequências. Você, na rua, vai ter que fazer tudo. Você é o salvador da pátria”, aponta. 

O estudo da Uerj identificou que, entre os fatores comuns, os policiais apontavam perseguições/amedrontamento, xingamentos, insultos, humilhações por pessoas do seu convívio e insatisfação com a própria PME-RJ, no que se refere a escalas de trabalho, infraestrutura, materiais e falta de reconhecimento profissional, ausência de oportunidades de ascensão.

As reclamações também incluíam transferência de unidade sem concordância ou aviso prévio; pouca sociabilidade entre os colegas e a família; pouca confiança nos companheiros de corporação, indicação de depressão e dificuldades para dormir.

Uma das conclusões dos pesquisadores é que o primeiro desafio a ser encarado é justamente desnaturalizar os eventos violentos como ‘irrelevantes’. “O segundo é sensibilizar policiais militares, praças e oficiais, a respeito dos principais fatores associados ao risco de suicídio”, afirmam.

Fonte: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/xxx/