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10/09/2018

MONITOR DA VIOLÊNCIA: UM ANO DEPOIS, APENAS 2% DOS CASOS DE MORTE VIOLENTA

Há um ano, uma megamobilização foi feita para que fossem contadas as histórias de todas as vítimas de crimes violentos ocorridos durante uma semana no Brasil. No período de 21 a 27 de agosto, o esforço de reportagem chegou a um número impressionante de mortes: 1.195. Uma a cada oito minutos, em média. O levantamento, inédito e exclusivo, marcou o início de uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: o Monitor da Violência.

Durante o último ano, mais de 230 jornalistas do G1 espalhados pelo país continuaram com a missão de investigar o andamento de todos esses casos. E o resultado, divulgado agora, é estarrecedor: mais da metade dos inquéritos policiais continua em andamento. Apenas 2% do total de casos têm hoje algum condenado pelo crime. E o mais grave: menos da metade dos crimes tem um autor identificado.

ANÁLISE DO FBSP: Produzindo impunidade

METODOLOGIA: Monitor da Violência

O novo levantamento revela que:

  • 687 casos estão em andamento (57,5% do total de casos)
  • 424 casos estão concluídos (35% do total)
  • são 104 suicídios no total
  • em 506 casos, a autoria ainda é desconhecida (em 116, não há informação sobre isso)
  •  469 casos com o autor ou os autores identificados pela polícia
  • em 215 casos, foi efetuada a prisão de um ou mais suspeitos(menos de 20% do total)
  • em 230 casos, os autores já respondem a processo na Justiça
  • 30 casos foram a julgamento (destes, 23 acabaram com uma condenação)

O Código de Processo Penal determina que um inquérito policial seja concluído em 10 dias quando houver prisão em flagrante ou 30 dias em caso de inexistência de prisão cautelar. Os delegados, no entanto, podem pedir um prazo maior para elucidar o caso – o que normalmente acontece.

Tanto é que a maior parte dos inquéritos instaurados há um ano segue em aberto. E, mesmo entre os 424 concluídos, 35 não chegaram à autoria do crime.

“O tempo obviamente tem uma importância dentro de uma investigação. Porém, nós não temos um prazo definido para investigações específicas. Cada investigação tem uma peculiaridade, ela nasce de uma forma, se desenvolve de outra e termina de outra forma”, afirma Daniel Rosa, delegado titular da Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense.

“Há investigações que são concluídas em uma semana, um mês, um ano. Já outras tramitam durante três, quatro, cinco anos, e, apesar desse longo tempo, elas possuem um desfecho satisfatório”, diz Daniel Rosa, delegado na Baixada Fluminense.

(Foto: Karina Almeida/G1)

 

Lentidão nas investigações

São várias as causas da lentidão nas investigações. A Polícia Civil do Pará, estado onde 70% dos inquéritos continuam em andamento, diz que o principal desafio durante as investigações de homicídios é a busca por pessoas que tenham testemunhado o crime e que possam prestar informações que ajudem na elucidação do crime. Isso porque muitas temem falar a respeito com medo de represálias.

Gilberto Montenegro Costa Filho, delegado em Votorantim e Salto de Pirapora (SP), concorda, mas diz que há outros fatores preponderantes para o baixo número de casos solucionados no país.

“Faltam recursos e equipamentos. A gente precisa de mais viaturas, computadores bons, reforma nos prédios. Tem delegacia que chove dentro, que é o caso da minha. Faltam pessoas para trabalhar e retaguarda jurídica”, diz o delegado Gilberto Filho, de Votorantim e Salto de Pirapora.

Apesar de as polícias dos estados terem identificado autores em 469 casos, só houve prisões em 215 deles.

O delegado Gylson Mariano Ferreira, assessor de comunicação da Polícia Civil em Goiás, diz que muitas vezes é pedida a prisão de suspeitos citados no inquérito, mas a Justiça entende que ela não é necessária.

“É importante deixar sempre bem destacado que a polícia, quando não há mais a situação de flagrante, só pode prender se houver ordem judicial. Então, muitas vezes, identifica-se o autor, mas o Judiciário entende que não é o caso de expedir a ordem de prisão, porque o autor tem residência fixa, tem serviço e não vai comprometer o andamento do processo. Por isso que, em alguns casos, identifica-se quem é, mas não tem prisão”, diz

Ele afirma ainda que, em alguns casos, as investigações estão praticamente concluídas, mas dependem do resultado de laudos ou exames para que o inquérito seja dado como concluído e seja remetido ao Poder Judiciário.

Para Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, diretores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o que se verifica é que a investigação de homicídios tem sido pouco valorizada no Brasil. “Várias referências internacionais nos mostram que, mais que mudar leis isoladamente ou à mercê do pânico, o que fará a diferença na segurança é esclarecer crimes, identificar seus autores e levá-los à Justiça. Isso só pode acontecer se houver investimentos reais na capacidade de investigação e de aprimoramento da inteligência de segurança pública.”

Bruno Paes Manso, pesquisador do NEV-USP, diz que a fragilidade da investigação policial no país garante ao homicida chances elevadas de permanecer impune. “Assassinatos, quando permanecem impunes, acabam, muitas vezes, provocando vinganças e organizando conflitos entre grupos rivais, que respondem da mesma forma à agressão, gerando novos homicídios. Esse efeito multiplicador, que cresce inercialmente como uma bola de neve, pode ser identificado na maioria dos bairros violentos e vem fazendo crescer de forma acelerada as taxas de homicídios, principalmente em cidades do Norte e Nordeste do Brasil”, diz.

(Foto: Karina Almeida/G1)

 

Feminicídios

Um dos dados que chamam a atenção neste novo levantamento é o número de feminicídios. Se na primeira semana eram 9, agora já são 22. Ou seja, durante as investigações, vários casos foram reclassificados, abarcando o novo conceito do crime de ódio motivado pela condição de gênero.

Foi o que aconteceu com o caso de Luciana Barbara da Silva Moura, morta pelo marido dentro de casa no dia 25 de agosto, em Diadema, na região metropolitana de São Paulo. Inicialmente, a ocorrência foi enquadrada como homicídio qualificado por violência doméstica. Ao longo das investigações, porém, o caso passou a ser tratado como feminicídio.

O caso foi relatado à Justiça no dia 18 de outubro do ano passado. O marido de Luciana, Arnaldo José Policarpo de Moura, está preso preventivamente e aguarda julgamento.

A delegada Milena Davoli, que comandou as investigações de outro assassinato, o da bancária Débora Goulart, em Tupã (SP), diz que uma das grandes dificuldades nas investigações de feminicídios é que em muitos casos o autor age com premeditação.

O assassino acredita possuir “um motivo” para matar a mulher – geralmente por não aceitar o término do relacionamento – e faz toda uma programação para fugir e escapar de uma punição. Segundo a delegada, titular da Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Tupã, foi justamente esse detalhe, o da premeditação, que fez com que Aílton Basílio, ex-marido da vítima, só fosse preso mais de um mês depois do crime.

“Ele [assassino] não só fugiu como planejou muito bem a sua fuga. Dias antes de matar a ex-mulher a facadas, o autor vendeu todos os seus pertences, sacou todo o dinheiro que tinha guardado, fez uma manobra com celulares, trocando números, aparelhos, IMEIs, tudo para conseguir fugir e dificultar ao máximo sua localização. Ou seja, ele se ‘equipou’ com dinheiro e roteiros de fuga de forma a ludibriar a investigação”, conta.

 

Condenados

Dos 30 casos que foram a julgamento, 23 terminaram com condenação dos acusados. Uma das últimas condenações aconteceu há menos de uma semana. Foi o caso do morador de rua Manoel Almeida da Silva, de 47 anos, condenado a 24 anos de prisão em regime fechado pela morte de outros dois moradores de rua em 27 de agosto, em Santo André, no ABC paulista.

Fabio Netto das Neves, de 48 anos, e o inglês Michael Steer Renshaw, de 50, foram agredidos com golpes de barra de ferro enquanto dormiam na frente de uma clínica na Rua Onze de Junho. Câmeras de segurança registraram o momento em que Silva andava pela rua com uma barra de ferro na mão. Silva confessou o crime e se disse arrependido.

“Tava jogando dominó. Eu quis parar de jogar e eles queriam que eu continuasse. A gente tava bebendo. Eles me deram um tapa, me pegaram no braço. Como eu sabia onde eles dormiam eu fui lá e fiz. Tô arrependido”, disse Manoel Almeida da Silva, condenado por matar dois moradores de rua.

Já o caso do estudante Luiz Eduardo Silva Rover, de 21 anos, foi o primeiro a ter uma condenação. Ele era o filho único do ex-prefeito de Vilheno (RO) José Luiz Rover (PP) e foi morto com um tiro dentro de casa em 25 de agosto.

Apenas dois meses depois, o suspeito já havia sido julgado e condenado a 28 anos de prisão. Um adolescente também envolvido no crime foi apreendido e está em uma unidade socioeducativa.

O condenado, Lucas Rodrigues Ramos, afirmou que estava usando drogas em uma praça no dia do crime e, para comprar mais entorpecentes, resolveu cometer um roubo. Junto com o adolescente, conseguiu entrar na casa de Rover, que estava dando um festa, e anunciou o roubo. Após confronto, os disparos foram feitos e Luiz Eduardo foi atingido no pescoço.

Outro caso que chamou a atenção e que já teve uma condenação na Justiça foi o do agente penitenciário Humberto Furtado, encontrado morto com um tiro na cabeça no Bujari (AC).

Diego Oliveira da Silva e Fagno Miller de Oliveira foram condenados a mais de 30 anos de prisão cada um. Além disso, duas menores também foram apontadas como ajudantes no crime, sendo que uma delas tinha um relacionamento amoroso com a vítima. Elas devem cumprir três anos de medida socioeducativa.

Não houve confissão, mas o juiz do caso, Manoel Pedroga, diz que ficou comprovada a intenção dos envolvidos em matar o agente penitenciário. O objetivo dos dois era roubar a arma do agente e repassar para a facção à qual pertencem.

 

Falta de transparência

G1 teve mais uma vez dificuldade para obter os dados pelo país. Secretarias se negaram a passar as informações e alguns delegados alegaram sigilo em casos onde não há qualquer impedimento para divulgação.

Por isso, além do esforço de conseguir as informações em delegacias e com familiares e conhecidos das vítimas, repórteres do G1 também fizeram solicitações via Lei de Acesso à Informação em todos os estados do país.

A falta de padronização continua a dificultar a contabilização dos casos. Em alguns estados, casos de suicídio, por exemplo, até hoje não têm nem inquérito instaurado; em alguns, eles são arquivados; em outros, os casos são dados como concluídos e relatados à Justiça.

A apuração nesses últimos meses revelou ainda que sete dos casos investigados acabaram reclassificados para mortes não violentas. Eles continuarão, porém, a constar do mapa, com a nova classificação. Além disso, alguns dos casos estavam duplicados e outros não haviam sido incluídos. No fim, o número de vítimas se manteve em 1.195.

Os textos publicados há um ano foram atualizados e o mapa ganhou três novos filtros.

Fonte: http://fenapef.org.br/monitor-da-violencia-um-ano-depois-apenas-2-dos-casos-de-morte-violenta-tem-condenados-pelos-crimes/