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18/10/2018

Baixo número de crimes investigados é prêmio para os bandidos

O bando chega de surpresa e rende a família que entrava com o carro em casa. Um dos assaltantes aponta a arma para a cabeça da filha de 3 anos do casal e ameaça matar a criança se o pai não entregar o veículo. No fim, vão embora com o automóvel e os bens das vítimas. Esta cena aconteceu em abril deste ano numa cidade da Região Norte do país. Falei com a família. Segundo um parente, os ladrões foram identificados e presos, mas libertados na audiência de custódia. Entre eles, estava o sobrinho do chefe de uma facção criminosa da região. À parte a decisão judicial de botar os suspeitos na rua, o que se pode dizer desses bandidos? São extremamente azarados. A taxa de elucidação de crimes no Brasil – e dos roubos, em particular – é pífia.

Matéria do “Extra” de domingo passado mostra que só 4% dos casos de roubo no Estado do Rio de Janeiro viram inquéritos, ou seja, são investigados. O que dá a um ladrão, seja do que for (carro, celular, padaria), 96 chances em cem de nunca ser nem mesmo investigado. Mas calma, que piora.

Chutando da estatística os casos de flagrante – em que a polícia recebe o pacote completo, ladrão, testemunha, PM, vítima e o que foi roubado (ou res furtiva, como preferirem) – a Polícia Civil fluminense só elucida um roubo a cada 168 registros. Entre janeiro de 2015 e agosto deste ano, foram 745 mil roubos registrados no Rio, segundo dados do Instituto de Segurança Pública. Destes, 19.834 casos foram resolvidos, quase 80% deles com nível de esforço zero, já que o autor do crime foi preso na hora do roubo. No mesmo período, segundo dados que recebi via Lei de Acesso à Informação, todas as varas criminais do estado julgaram 14.615 casos de roubo. Destes, 12.281 tiveram condenações.

Essa numeralha toda é para dizer o seguinte: a chance de um ladrão roubar e não ser punido é altíssima. Se for identificado, pode não ser preso. Caso acabe preso, pode não ser indiciado. Talvez o indiciamento ocorra, mas sempre há a possibilidade de acabar não sendo denunciado pelo Ministério Público. Se for, talvez não vire réu. Eventualmente, por má sorte, pode terminar na frente de um juiz. Mas não há garantias de que seja condenado. No fim, numa continha simples, a proporção entre registros de ocorrência de roubo e condenações pelo mesmo crime é de 60 para um. A esse derretimento da capacidade de punir um crime, no caminho entre a polícia e a Justiça, os estudiosos da área criminal chamam “taxa de atrito”. E é melhor nem falar no “dark number”, a cifra negra, que conta tanto os crimes não julgados quanto aqueles que nem passaram pela porta da delegacia.

A elucidação dos crimes se arrasta país afora. Em 2014, o secretário de Segurança Pública de São Paulo afirmou que apenas 2% dos casos de roubo eram solucionados no estado. Um estudo em Mato Grosso de 2009 bota a taxa de resolução e punição de crimes abaixo dos 4%.

Mesmo nos casos de homicídio a taxa de elucidação é decepcionante. No Estado do Rio, o número mais recente, do segundo semestre de 2016, expõe que 14,5% dos casos foram solucionados. Não é preciso ser estatístico para ver que ser criminoso se tornou uma atividade de baixo risco.

Por baixo de todas as estatísticas reside um fato simples: com raras exceções, a Polícia Civil virou um cartório. Carro roubado? Pega o registro (ou boletim) de ocorrência na delegacia. Celular foi surrupiado e tinha seguro? Registro. Perdeu os documentos? Registro. Mas, como se viu nos números mostrados aqui, investigação virou artigo de luxo.

E, é bom que se frise, não por culpa dos policiais. O déficit de pessoal na Polícia Civil do Rio é escandaloso: há cerca de 9 mil agentes atualmente, em lugar dos 23 mil previstos em lei. O inspetor, em lugar de investigar, tem de ficar na delegacia fazendo registros de ocorrência — serviço que qualquer outra pessoa, mesmo sem ser policial, poderia realizar. A polícia, por força da Constituição, não tem um ciclo único no país; PM prende, Civil investiga, cada uma no seu quadrado. E isso cria burocracia, tirando gente da função primordial de prender criminosos e desvendar crimes.

A menos que a estrutura da persecução criminal mude, será inútil endurecer as leis. Para um criminoso, manter tudo como está é prêmio. Se a probabilidade de punição quase não existe, tudo parece ser permitido.


Fonte: https://epoca.globo.com/baixo-numero-de-crimes-investigados-premio-para-os-bandidos-23162345