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28/01/2019

COMO RIO DAS PEDRAS VIROU SEDE DO ESCRITÓRIO DO CRIME

O Escritório do Crime — elaborada definição para uma quadrilha de matadores de aluguel — nasceu no berçário das milícias do estado: a favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A comunidade de mais de 60 mil moradores cresceu desordenadamente ao longo de cinco décadas, espalhando-se por uma área equivalente a quatro Maracanãs, entre os bairros de Jacarepaguá, do Anil e do Itanhangá. A região é controlada pela mais antiga e influente milícia do Rio de Janeiro, organização criminosa que tem entre seus integrantes agentes de segurança do estado, entre servidores da ativa, aposentados e afastados. O grupo se imiscuiu em atividades ilegais, como a grilagem de terras, a construção e venda de imóveis sem licença, a extorsão de moradores e de comerciantes e o controle e cobrança de serviços essenciais como água, gás, luz e transportes públicos. A quadrilha também negocia permissões para que candidatos possam pedir votos nas áreas que domina. Só faz campanha ali quem paga pedágio.

 

Como prestadores de serviços sujos, o Escritório do Crime acumula indícios de envolvimento em dezenas de assassinatos. O mais rumoroso deles foi o da vereadora Marielle Franco (PSOL). Até 14 de março de 2018, data da morte de Marielle, os crimes da quadrilha passaram impunes. Nenhum dos homens do grupo de extermínio havia sequer pisado na calçada da Delegacia de Homicídios da capital do Rio, que fica a menos de 10 quilômetros da favela onde está o Escritório do Crime. Eram considerados intocáveis, situação que deu nome à operação realizada na última terça-feira para prender integrantes do grupo de extermínio e da milícia que controla aquela parte da cidade, hoje turbulenta.

Mas nem sempre foi assim. Até os anos 50, Rio das Pedras era apenas o nome do córrego que cortava a bucólica Jacarepaguá, perto da Lagoa da Tijuca. Atraídas pela expansão imobiliária da Barra da Tijuca e de suas cercanias — alavancada pelo ousado plano diretor do arquiteto Lúcio Costa — e pela oportunidade de emprego na construção civil, famílias nordestinas fincaram raízes na região. Sem lugar para morar, muitos invadiram uma área pantanosa do sistema lagunar de Jacarepaguá, aterraram seus manguezais e ergueram ali os primeiros barracos.

Em 1964, ameaçadas de remoção por pessoas que se diziam donas do terreno, 96 famílias conseguiram que o então governador, Negrão de Lima, desapropriasse as terras, transformando-as em área de interesse social. Entre os beneficiários estava Octacílio Brás Bianchi. Ele foi um dos fundadores da primeira associação de moradores da favela. Sem a presença do poder público para garantir outros direitos, eles criaram as próprias leis. “O seu Octacílio era amado por comerciantes, que contribuíam de forma voluntária com a associação, que espantava ladrões e evitava que o tráfico invadisse a comunidade”, contou um antigo morador, que na terça-feira comemorou a prisão dos atuais chefes da organização.

Não demorou para que a favela ganhasse fama de matar bandidos na “peixeira”— faca comprida e afiada, comum no Nordeste, que era usada como arma branca.

Com uma nova expansão a partir dos anos 80, a cobrança de taxa dos comerciantes passou a ser obrigatória. Em seguida, o crescimento do transporte público ilegal, batizado como “alternativo”, tornou-se novo filão de lucros. À medida que os negócios cresciam, o comando passou a ser cobiçado. Em 1989, Bianchi foi assassinado. Sua mulher, Elita, conhecida como Dinda, lhe sucedeu e acabou sendo morta seis anos depois, dentro da associação de moradores. O policial civil Félix Tostes assumiu o comando, com o apoio de outros policiais da ativa, para manter o local protegido de traficantes e de qualquer fiscalização que pudesse atrapalhar os negócios.

Em 2004, a associação lançou candidato próprio à Câmara dos Vereadores do Rio, o comerciante Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras. Ele concorreu pelo PFL, mesmo partido do prefeito Cesar Maia, reeleito naquele ano. Com muito dinheiro para a campanha, Nadinho foi o nono vereador mais votado, com 34.764 votos. Na mesma eleição, o então jovem candidato Carlos Bolsonaro também foi eleito, com bem menos votos: 22.355.

Assim as milícias entraram de vez na política. Outros dois candidatos de regiões controladas por milicianos foram eleitos no mesmo pleito: o policial civil Jorge Luís Hauat, o Jorge Babu (PT), reeleito com 24.532 votos; e Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho (PMDB), que conquistou 33.373 votos, integrante da Liga da Justiça, que se tornou nos anos 2000 a maior milícia do estado do Rio, controlando grandes bairros da Zona Oeste carioca, como Campo Grande, Inhoaíba, Paciência e Santíssimo.

Em 2006, de nove candidatos com origem na área de segurança pública que fizeram campanha para deputado em áreas dominadas por milícias, cinco conseguiram se eleger. Entre eles estava o secretário de Segurança Pública do governo Garotinho, o delegado federal Marcelo Itagiba.

As milícias se multiplicaram na cidade, saltando de 42 para 92 áreas dominadas. Enquanto essas organizações paramilitares declaravam guerra a quadrilhas de traficantes pela disputa de território, às vésperas da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, em novembro de 2006, o prefeito Cesar Maia afirmou que milícias eram “autodefesas comunitárias” e “um mal menor que o tráfico”. As declarações foram vistas como apoio velado. Entre 27 e 31 de dezembro daquele mesmo ano, facções do tráfico lançaram uma série de ataques contra alvos civis, da polícia e até do governo em toda a cidade, em represália ao avanço das milícias. Os traficantes incendiaram ônibus e jogaram bombas em prédios públicos. Nos ataques, 19 pessoas foram mortas.

No início de 2007, Félix Tostes foi assassinado, após se desentender com Nadinho de Rio das Pedras. Segundo investigações da polícia, o vereador encomendou o crime a outro grupo de extermínio, a Liga da Justiça, comandada pelo ex-vereador Jerominho e por seu irmão, o ex-deputado estadual Natalino José Guimarães (DEM).

Já em seu segundo mandato como deputado estadual, Flávio Bolsonaro (PP) votou contra a instalação da CPI das Milícias e chegou a defender sua legalização. “As classes mais altas pagam segurança particular, e o pobre, como faz para ter segurança? O Estado não tem capacidade para estar nas quase 1.000 favelas do Rio. Dizem que as milícias cobram tarifas, mas eu conheço comunidades em que os trabalhadores fazem questão de pagar R$ 15 para não ter traficantes”, afirmou.

Em 2008, a CPI das Milícias foi instalada na Alerj, sob a presidência do deputado Marcelo Freixo (PSOL). Ao depor, Nadinho admitiu a existência do grupo na favela de Rio das Pedras e afirmou que, a partir daquela audiência, sua vida corria perigo. Ele foi assassinado em junho de 2009, na porta de sua casa, com mais de dez tiros.

A CPI das Milícias revelou 170 áreas dominadas por esses grupos, e identificou e indiciou 226 integrantes, entre eles Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba, presidente da associação de Rio das Pedras, que chegou a ser preso acusado de participação na quadrilha e condenado, mas conseguiu absolvição em segunda instância. Beto Bomba voltou a ser preso na última terça-feira.

O Escritório do Crime tem estrutura própria e existe há pelo menos cinco anos. Só entrou no foco da polícia há alguns meses, com as investigações do assassinato de Marielle e de seu motorista, Anderson Gomes. A principal pista para ligar o grupo à execução da vereadora veio do interrogatório de um de seus integrantes. Embora ele tenha negado que estivesse no bairro do Estácio, onde Marielle foi morta, no dia do crime, dados de antenas de celulares, cruzados com um aparelho usado pelo suspeito, indicaram que ele estava no local no dia e na hora do assassinato.

Outro indício contra o grupo foi a confirmação de que o carro, modelo Cobalt, usado pelos assassinos de Marielle e Anderson passou pelo Itanhangá antes de seguir para a emboscada à vereadora. Uma câmera da prefeitura flagrou o veículo seguindo em direção a Rio das Pedras.

A lista de assassinatos atribuídos pela polícia ao Escritório do Crime é extensa. O grupo é suspeito do assassinato do presidente da Portela Marcos Vieira de Souza, conhecido como Falcon, de 52 anos, em setembro de 2016. Ele concorria a uma vaga de vereador pelo PP e foi executado em seu comitê eleitoral, em Oswaldo Cruz, na Zona Norte, quando seus seguranças o deixaram sozinho por alguns minutos. Foi o tempo suficiente para dois homens encapuzados entrarem no local e assassinarem o candidato com tiros de fuzil na cabeça. Nem a presença de câmeras no local inibiu a ação.

Outro homicídio atribuído aos mercenários é o do sargento reformado da PM Geraldo Antonio Pereira, no estacionamento de uma academia no Recreio, na Zona Oeste, em maio de 2016. Em junho do ano passado, a vítima foi o contraventor Haylton Carlos Gomes Escafura, de 37 anos, filho do bicheiro José Caruzzo Escafura, o Piruinha. Mais uma vez, o crime foi cometido por dois homens, que subiram até um quarto no oitavo andar de um hotel na Barra da Tijuca, onde estavam a vítima e sua acompanhante, a PM Franciene Soares de Souza, de 27 anos. Todos os crimes continuam sem solução.

Fonte: https://epoca.globo.com/como-rio-das-pedras-virou-sede-do-escritorio-do-crime-23398750