As expressões “Estado Policial” e “jacobinismo de toga” frequentaram, nos últimos anos, o vocabulário dos maiores críticos da Operação Lava Jato. Eles, na maioria das vezes, não tinham razão. Mas ao mudar, na última semana, o padrão das prisões – antes assentadas em provas – para a perigosa escala da espetacularização e da tolerância zero, a própria Lava Jato começa a fornecer combustível aos seus detratores e àqueles interessados em implodir com o necessário combate à corrupção no País. O viés messiânico da Lava Jato nunca esteve tão exposto como agora. Senão vejamos.
Ao mandar para trás das grades na quinta-feira 21 o ex-presidente Michel Temer, o ex-ministro Moreira Franco e o assessor Coronel Lima, apontado como o operador financeiro na “organização criminosa”, o juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, simplesmente esqueceu-se do essencial: fundamentar a prisão. Reza a lei, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal, que para ser preso, Temer & cia teriam de: ou estar condenados, ou criando embaraços às investigações ou em delinquência continuada – o que não se aplica ao caso. O Ministério Público Federal argumenta, em seu favor, que o ex-presidente Temer montou um sistema de contra-inteligência dentro do próprio MP para acompanhar as investigações que pesam sobre ele, apagar eventuais rastros e coibir o surgimento de testemunhas capazes de encalacrá-lo ainda mais. Ocorre que, em sua peça de 46 páginas, Bretas sequer menciona esses elementos. Há que se distinguir as acusações dos procuradores das provas necessárias ao pedido de prisão. É o que marca, por exemplo, a diferença entre as detenções de Temer e do ex-presidente Lula. Contra o petista há uma fartura de provas, enquanto que contra o ex-vice de Dilma, ao menos até o momento, elas inexistem. “Não há qualquer justificativa concreta a específica para a prisão de Temer. Só generalidades: a decisão não está devidamente motivada. Indica o artigo da lei, mas não diz a razão pela qual esse artigo deve ser aplicado ao caso concreto. Fica clara a politização da Justiça”, afirmou um jurista ouvido por ISTOÉ.
Filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, Sócrates aconselhava os magistrados a ouvir cortesmente, responder sabiamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente. Não é o que parece fazer o juiz Marcelo Bretas. Na manhã do dia 14 de março, cinco horas antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) começar a definir que crimes como corrupção e lavagem de dinheiro, quando relacionados a ilícitos de caixa dois, poderiam ser processados na Justiça Eleitoral e não na Federal, Bretas escreveu em sua rede social: “Há uma batalha em curso, uma disputa entre o certo e o errado, o justo e o injusto. Assim é a vida, em todos os tempos… Mesmo em momentos de muita dificuldade convém manter a disposição para seguir em frente”. Em seguida, ele postou uma card de autoajuda extraído do site “Frases do Bem”: “Antes de desistir de tudo, lembre-se: as estrelas destacam-se no escuro”.
Essas e outras postagens de Bretas ao longo dos últimos dias demonstram claros recados àqueles que, na avaliação do juiz, atuavam para barrar a Operação Lava Jato e o combate à corrupção. Ao longo da semana, ele demonstrou que preparava uma retaliação. “O movimento que vivemos recomenda serenidade, o que não significa baixar a cabeça diante das dificuldades”, escreveu ele no dia 18 de março. Na quinta-feira 21, veio o pedido de prisão cautelar de Temer e de seu ex-ministro das Minas e Energia Moreira Franco, entre outras pessoas. Somadas as postagens à prisão, Bretas parecia dizer claramente: “Não mexam com a Lava Jato, que haverá reação”. O perigo está no risco de Bretas ter agido mais com o fígado e menos com a cabeça ao articular o contra-ataque. Embora haja na denúncia de Temer pesadas acusações e indícios de corrupção, a peça produzida por Bretas não indica nenhuma evidência que justificasse a prisão cautelar. Temer não é mais presidente. É hoje um cidadão comum. Assim como Moreira e os demais envolvidos. Estava em sua casa em São Paulo, em endereço conhecido.
Aparentemente, não pretendia fugir nem se ausentar do país. Não há nada que indique que Temer atuava para, de alguma forma, atrapalhar as investigações que o envolvem.
“Abuso de autoridade”
Após a operação, políticos como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que declarou-se sempre contra a participação de seu partido no governo Temer – não sendo, assim, aliado dele – manifestaram-se sobre o que consideram um “abuso de autoridade”. Uma linha de atuação que, se prevalecer, pode transformar a resposta da Lava Jato em um tiro pela culatra: ao invés de fortalecer o combate à corrupção, está se dando força justamente aos argumentos daqueles que, no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, pensam que é hora de por um freio nas ações do Ministério Público e do Judiciário. O combate aos ilícitos é fundamental. Por isso mesmo, quem trabalha nesse sentido precisa manter a serenidade e evitar que tudo se transforme em uma guerra entre instituições. Bretas comporta-se como quem caminha na direção contrária.
Há mais de uma coincidência apontando no sentido de que a prisão de Temer tenha sido uma reação à decisão do STF. A ação cautelar do Ministério Público do Rio de Janeiro foi pedida um dia depois da polêmica deliberação do Supremo de enviar à Justiça Eleitoral os casos de corrupção, mais precisamente às 22h do dia 15 de março. Recomendava a prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer, do coronel reformado da Polícia Militar João Baptista Lima Filho (o coronel Lima), de sua esposa Maria Rita Fratezi, dos empresários Carlos Alberto Costa, Carlos Alberto Costa Filho, Vanderlei de Natale e Carlos Alberto Montenegro Gallo, além do ex-ministro Moreira Franco. Era a deixa perfeita para o juiz federal Marcelo Bretas agir.
A própria classe política agiu com uma cautela incomum nestes dias de guerra nas redes sociais. Além de Tasso Jereissati, mesmo líderes de partidos de esquerda, sempre contrários a Temer, saíram em sua defesa quanto à forma da prisão. As únicas comemorações vieram do PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Em nota, até o PT reclamou: “Estaremos diante de mais um dos espetáculos pirotécnicos que a Lava Jato pratica sistematicamente, com objetivos políticos e seletivos”. O MDB foi contundente: “O partido lamenta a postura açodada da Justiça À revelia do andamento de um inquérito em que foi demonstrado que não há irregularidades por parte do ex-presidente da República, Michel Temer, e do ex-ministro Moreira Franco”.
Lances de espetáculo, durante as prisões, acabaram por provocar o sentimento de estarrecimento geral. “Isso é uma barbaridade”, reagiu Temer no carro levado pelos policiais federais. O ex-presidente estranhou ainda a presença de jornalistas na porta da sua casa no momento da sua detenção. Marcela Temer ficou em estado de choque. A prisão de Moreira Franco foi temperada com cenas ainda mais midiáticas. Ele desembarcava no Aeroporto Tom Jobim, no Rio, e estava sendo esperado pelos policiais. Saiu por uma porta diferente daquela em que os policiais o esperavam e entrou em um automóvel. Os policiais, então, requisitaram um taxi e saíram atrás dele como numa perseguição de filme de Hollywood.
Na Câmara, parlamentares disseram a ISTOÉ que a atitude da Lava Jato, da forma como aconteceu, pode ter se dado em um “timing errado”. Além do recado ao STF, interpreta-se que possa ter havido também uma retaliação ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Maia resolveu segurar o plano anti-corrupção do ministro da Justiça, Sérgio Moro. Ao ser cobrado por Moro, o parlamentar reagiu de forma ríspida chamando-o de “funcionário do Bolsonaro” e dizendo que seu pacote era um “copia e cola” da proposta enviada pelo hoje ministro do STF Alexandre de Moraes quando era ministro da Justiça de Temer. Moreira Franco é sogro de Rodrigo Maia.
“Integridade física”
Nos autos, o juiz Marcelo Bretas argumenta que a prisão preventiva de Temer e aliados foi determinada para resguardar a integridade física dos acusados, necessidade de assegurar a credibilidade das instituições públicas, “em especial o Poder Judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal” e impedir o seguimento de ações criminosas. A questão é que, em termos de exemplo, Bretas citou apenas um caso ocorrido na Operação Patmos, em maio de 2017, quando os escritórios da Argeplan, empresa citada no esquema, passavam por limpezas diárias pelos seus funcionários, com, inclusive, o descarte de imagens internas da companhia.
Prender um ex-presidente da República é sempre um assunto delicado. Se, por um lado, reforça a ideia de que a Justiça não escolhe partidos no combate à corrupção, qualquer suspeita de atropelo das normas pode acabar gerando efeito contrário e reforçando os argumentos de quem quer varrer tudo para debaixo do tapete. Todo cuidado é sempre muito pouco para evitar que as conquistas dos últimos anos escorram por água abaixo.
Em um histórico rápido, a Lava Jato teve notórios méritos e as prisões preventivas trouxeram elementos probatórios bem mais substanciados. Um exemplo foi a detenção do ex-senador Delcídio do Amaral. Quando ele foi preso em 2015, a Lava Jato possuía áudios e um verdadeiro plano de fuga traçado para beneficiar o ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró. O ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, também foi alvo de prisão preventiva, mas somente após operar dia após dia, na Casa, pela manutenção de seu mandato, coagindo, publicamente, seus colegas parlamentares. Por isso, no momento em que cometem abusos, juízes com pretensa capa de “heróis da nação” contribuem decisivamente para macular a trajetória de uma operação bem-sucedida. Jovens procuradores bradam, sempre em tons messiânicos, contra a “falência do sistema político”. Ela é real. Obviamente, existe. Nada disso, porém, pode atingir irreparavelmente as garantias constitucionais. Cabe, agora, à população decidir, por intermédio dos instrumentos que fornece a democracia, se, sob o pretexto de se combater a corrupção, o País deve ou não mergulhar em um salve-se quem puder.
Com bem disse recentemente o sociólogo Demétrio Magnoli, a Lava Jato perecerá se não for contido o espírito jacobino que anima uma parcela do Ministério Público. Robespierre, líder dos Jacobinos na Revolução Francesa, eternizou-se na História como algoz e vítima de um processo político que, iniciado por ele, saiu de seu controle e acabou o consumindo. O que o exame desapaixonado dos fatos recentes mostra é que os jacobinismos produzem desfechos conhecidos – em geral, deletérios ao País. Que os operadores de nossas guilhotinas nunca se esqueçam disso.
O passado turbulento do “Gato Angorá”
Wellington Moreira Franco (MDB-RJ) de 74 anos, é um político hábil que poderia ter recebido o apelido de Raposa. Mas as maneiras refinadas e os bastos cabelos brancos que lembram um gato inspiraram Leonel Brizola a apelidá-lo de “Gato Angorá” – o mesmo codinome da lista de propinas da Odebrecht. Além de ser o último governador fluminense vivo a ter sido preso, tem um passado de problemas na política. Piauiense, começou a fazer política contra a ditadura. Ao assumir o governo do Rio em 1987, envolveu-se com bicheiros e foi acusado de malversação de verbas e manipulação de concorrência. Em 1995, tornou-se amigo de Michel Temer. Foi ministro de Dilma Rousseff, mas, quando o governo dela começava a ruir, colaborou para derrubá-la. Quando Temer assumiu a presidência, virou um de seus aliados mais próximos. É genro de Rodrigo Maia.