Existem presidentes da República que não sabem manejar crises. Faltam-lhe jogo de cintura. Há outros talhados para administrar problemas. Crescem na adversidade. Gostam de trabalhar debaixo de pressão. Jair Bolsonaro não é um, nem outro. O mandatário é a encarnação da própria crise. Sob o capitão reformado, a Presidência virou sinônimo de barafunda. O Planalto é um celeiro de infindáveis confusões. Patrocinadas por Bolsonaro, inquilino do gabinete mais importante do País, elas brotam do chão e fincam raízes. A última contenda ameaça colocar a pique a reforma da Previdência, a proposta mais importante do governo – que, na verdade, não deveria ser um projeto governamental, mas de Estado, de tão primordial para o futuro do País. As alterações na Previdência são o último fiapo do já frágil elo entre o empresariado, o mercado e o governo.
Sem ela, o Brasil vai para a bancarrota em dois anos de maneira inexorável. Vira uma Grécia dos novos tempos. E vamos todos para a insolvência sem escalas. Bem antes, porém, o próprio governo desmorona como um castelo de cartas. Não por acaso, em menos de 100 dias de administração, a palavra impeachment já é sussurrada nas praças, botequins e redes sociais. A pergunta nos meios políticos, empresarial e até mesmo militar não se restringe mais a questionar quando a nova crise irá ter um ponto final, mas se o presidente da República terá fôlego e musculatura política para concluir o mandato.
Foi ao cinema
O estarrecedor é que Bolsonaro parece alheio a tudo, como se tivesse sido invadido pelo espírito da orquestra do Titanic, que continuou a música enquanto o navio naufragava. Até serem tragados pelas ondas, os instrumentistas do portentoso navio britânico tocavam valsas vienenses e hinos religiosos. Já Bolsonaro, em meio ao caos em que virou o governo, resolveu ir ao cinema. Na terça-feira 26, antes de iniciar seus compromissos de trabalho, dirigiu-se à sessão acompanhado da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, para a pré-estreia do filme “Superação, o Milagre da Fé”, em um shopping da capital federal. A República ficou estupefata. Ninguém entendeu. A ida ao cinema era parte da agenda de inclusão de pessoas com deficiência que marca o trabalho de Michelle. Poderia até ser encarado como uma atividade positiva se não tivesse ocorrido em horário de expediente num dia em que o governo só sofreu derrotas. “O presidente está brincando de presidir o Brasil”, definiu o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Vice-almirante e aviador da Marinha dos EUA, premiado com a Medalha de Honra na Guerra do Vietnã, James Stockdale foi um militar como Bolsonaro. Mas o presidente jamais deve ter lido sobre seus conselhos. Stockdale, falecido em 2005, foi prisioneiro de guerra por mais de sete anos. Ele conta que aqueles que se alimentavam somente de “esperanças” e apostavam todas as fichas apenas no “milagre da fé”, como o filme homônimo assistido por Bolsonaro, foram os primeiros a sucumbir na prisão vietnamita. Morreram. ?Os que sobreviveram foram os que enfrentaram a realidade como ela é, não como queriam que ela fosse. Bolsonaro parece querer fugir da realidade. Age no limite de irresponsabilidade. Por isso, flerta com o abismo.
Sem lua de mel
Assim, o que era para ser um período de lua-de-mel com a classe política e o eleitorado, os primeiros meses de mandato viraram um pesadelo interminável. A voz que fala pelo Brasil real, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a exata dimensão do problema. Em recente evento no ministério, comparou o País com um avião que sobrevoa o oceano sem combustível levando os filhos dos brasileiros. Os pais teriam duas alternativas: saltar de paraquedas e abandonar as crianças à própria sorte – na analogia, o correspondente a rejeitar a reforma da Previdência –, ou aceitar sacrifícios e salvar as gerações futuras. Só que os pais, na visão de Guedes, eram os deputados e senadores, a quem caberiam a responsabilidade de aprovar a reforma. Hoje, no entanto, quem demonstra desejar pular de paraquedas é Bolsonaro. Acontece que a janela, como alertou o economista Marcos Lisboa do Insper, uma hora “pode se fechar”. E não sobra ninguém. Nem mesmo Bolsonaro.
Embora não goste de saltar com o avião em movimento, Guedes pode deixar a Esplanada caso entenda que possa estar sendo sabotado. Repetiu a ameaça mais de uma vez, desde a posse. Na semana passada, voltou à carga. “Se o presidente apoiar as coisas que acho que podem resolver para o Brasil, estarei aqui. Agora, se o presidente, ou a Câmara ou ninguém quer aquilo, eu vou obstaculizar o trabalho dos senhores? De forma alguma. Eu voltarei para onde sempre estive. Eu tenho uma vida fora daqui”, afirmou Guedes no Senado. E acrescentou: “Estou aqui para servi-los. Se ninguém quiser o serviço, não tenho apego ao cargo, foi um prazer ter tentado”. Intramuros, o ministro desabafou: “Estou de saco cheio”.
Na última semana, segundo apurou ISTOÉ com fontes qualificadas do primeiro escalão, o clima no governo era de “abatimento geral”. Decepção total com o desenlace do cenário. O ambiente está cada vez mais tóxico. Segundo cálculos preliminares, o governo não dispõe nem de 50 votos para aprovar a reforma. Necessita de nada menos do que 308. Hoje, praticamente toda a Câmara já manifestou-se no sentido de que a matéria, do jeito que foi enviada, não será aprovada (confira tabela às págs. 27 e 28). Não é só na Previdência que o governo derrapa. Das sete Medidas Provisórias, seis projetos de lei e uma proposta de emenda à Constituição que Bolsonaro enviou em doze semanas, nenhuma teve andamento. Na noite de quarta-feira 26, deputados aprovaram em dois turnos o Orçamento Impositivo, pior dos mundos para qualquer equipe econômica, que passa a ser obrigada a pagar, entre outras despesas, as emendas parlamentares de maneira discricionária. É o chamado engessamento dos recursos. Algo que vai na linha oposta do que Guedes tenta fazer para obter economia. De um orçamento de R$ 1,3 trilhão, o governo passa a ter margem de manobra para apenas R$ 45 bilhões. Ou seja: não vai haver como fechar o ano sem déficit. A votação foi apelidada de “A noite do parlamentarismo”. Para disfarçar a derrota iminente, integrantes do PSL, o “03” Eduardo Bolsonaro incluído, combinaram votar a favor da medida. Nem todos entenderam a estratégia. Joice Hasselmann, líder do governo no Congresso, posicionou-se contra. “Estou perplexo. Muitas vezes não sei mais quem é situação e quem é oposição”, disparou o líder do PSL no Senado, Major Olímpio. Não deve parar por aí. Agora, os parlamentares, como forma de retaliação, pretendem não aprovar o decreto do governo que autoriza a entrada no Brasil de cidadãos dos Estados Unidos, da Austrália, do Canadá e do Japão sem a necessidade de visto. Na esteira, podem comprometer também a tramitação do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, ao lado de Paulo Guedes um dos pilares do governo.
Se já não seria algo trivial, essa investida tende a ser muito mais hercúlea se o governo não se dispuser a fazer política. Não se trata de retomar o desbotado “toma lá, da cá” que o PT corruptamente consagrou. Se enveredasse por esse caminho, Bolsonaro estaria, sim, traindo os 58 milhões de brasileiros que o elegeram. Mas abdicar do corpo a corpo com o Parlamento na tentativa de dissuadi-lo com argumentos sobre a vital importância da reforma é abrir mão de uma das atribuições precípuas de um líder e governante. Negociação política não deve ser confundida com fisiologismo. Nem com corrupção. Nomear pessoas tecnicamente qualificadas, sem que haja sinal verde para saquear os cofres públicos, é natural em qualquer democracia. Nos países democráticos, principalmente no presidencialismo à brasileira, é imperativo sentar-se à mesa com o Congresso. A retrospectiva histórica é pródiga em mostrar o destino de presidentes que deram de ombros ao salutar meio-campo com o Legislativo.
Falta de diálogo
A encrenca hoje é tamanha que até deputados da chamada bancada evangélica – aliados de primeira hora de Bolsonaro – reclamam da falta de diálogo. Na verdade, nem o partido do presidente, o PSL, está satisfeito. O líder do governo na Câmara, major Vitor Hugo (PSL-GO), a quem caberia ajudar o presidente na negociação com o Congresso, é tachado de desastrado e ingênuo. Para piorar, quando o presidente se reúne com integrantes do governo para tentar apagar o incêndio e em seguida um de seus filhos – mais precisamente Carlos Bolsonaro, a quem todos querem comprar um “playstation” para que ele saia da internet, esqueça a senha do perfil do presidente e pare de atrapalhar o País – posta que o principal articulador da reforma no Congresso quer o presidente “fora das redes para chantageá-lo”, ele mesmo acende um barril de pólvora no próprio quintal. “Há muito tempo não vejo este clima de briga de cortiço na política. A continuar assim, e não vejo como mudar, vamos para uma crise terminal”, disse o ex-ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros.
Em paralelo, ministros da chamada “ala ideológica” da Esplanada sentem-se como cavaleiros templários que vão mudar o Brasil quiçá o mundo. Adotam a deletéria filosofia de terra arrasada ao esgrimir o discurso segundo o qual “se os fatos não me ajudam, pior para os fatos”. No devaneio coletivo do bolsonarismo, como eles supostamente representam “a redenção” da nação em contraposição à tragédia do lulopetismo, obstáculos serão vencidos no Congresso a partir do apoio popular. Se perderem, paciência. “O povo não quis”. Ou “não era a vontade de Deus”. E os brasileiros nas intermináveis filas de desemprego que se lasquem. É como pensam os alunos do eremita da Virgínia, Olavo de Carvalho, hoje impregnados na administração federal a pontificar sobre o nada. Só que enquanto eles tratam o governo como um grande parque de diversões, o comandante que deveria comandar, não comanda. E o País afunda. Basta uma situação limite para reconhecer os muitos Francescos Schettinos em terra firme – aquele sujeito que, ao ver a água invadir o Costa Concórdia (o célebre navio que naufragou na ilha de Giglio, na Itália, em 2012), foge do barco para escapar das responsabilidades que se impõem. Não é isso que se espera de um presidente da República. Vada a bordo, Bolsonaro. Antes que seja tarde.
No Congresso e mesmo no Planalto a percepção é quase unânime. Os reiterados episódios de indigência verbal do presidente reforçam o sentimento, cada dia mais perto da convicção, de que o ex-deputado federal do baixo clero ainda não assumiu a Presidência da República. Se o tivesse feito, Bolsonaro agiria como chefe de Estado. Não como tuiteiro de plantão, atendo-se a questiúnculas inúteis cujo único propósito é o de animar a militância nas redes sociais. Não se tem informação de um presidente que tenha demorado tanto para descer do palanque. O mercado precificou o desastre. Nos primeiros minutos do pregão de quinta-feira 28, o dólar ultrapassou a casa dos R$ 4. O preocupante no curto e longo prazo é que, embalado pela ideia de “nova política”, Bolsonaro não demonstra nenhum interesse em construir uma base parlamentar sólida o bastante para aprovar projetos do interesse do Executivo e do Brasil. “O que é articulação?”, questionou ele nos últimos dias, em tom irônico.
“Não tenho como atender todo mundo”, justificou na quarta-feira 27. O chefe da nação parece crer que não cabe a ele a tarefa de persuadir sociedade e parlamentares da necessidade de endurecer as regras das aposentadorias. Peça principal no xadrez para a aprovação da proposta no Congresso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, advertiu, entre outros alertas, que a Casa “não tem 320 liberais” e será preciso convencer até 280 deputados. Na esteira do raciocínio matemático, lamentou: “Não tem governo. É um governo vazio, que não tem ideia, proposta, articulação”, afirmou. Na quarta-feira 27, Maia foi mais incisivo, depois de informado que Bolsonaro chegou a dizer que ele estava “abalado com questões pessoais”: “Abalados estão os brasileiros que estão esperando desde 1º de janeiro que o governo comece a funcionar. São 12 milhões de desempregados, 15 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza”.
Fonte: https://istoe.com.br/o-presidente-quer-enterrar-a-previdencia/